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Nossa Poesia

Nossa Poesia

By Poesias

Nossa poesia é um podcast com o intuito de divulgar obras da poesia em domínio público.
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Voz que se cala - Florbela Espanca

Nossa PoesiaDec 14, 2020

00:00
01:15
Noturno - Olavo Bilac

Noturno - Olavo Bilac

Noturno de Olavo Bilac por Gus

Já toda a terra adormece.

Sai um soluço da flor.

Rompe de tudo um rumor,

Leve como o de uma prece.

A tarde cai. Misterioso,

Geme entre os ramos o vento.

E há por todo o firmamento

Um anseio doloroso.

Áureo turíbulo imenso,

O ocaso em púrpuras arde,

E para a oração da tarde

Desfaz-se em rolos de incenso.

Moribundos e suaves,

O vento na asa conduz

O último raio da luz

E o último canto das aves.

E Deus, na altura infinita,

Abre a mão profunda e calma,

Em cuja profunda palma

Todo o Universo palpita.

Mas um barulho se eleva...

E , no páramo celeste,

A horda dos astros investe

Contra a muralha da treva.

As estrelas, salmodiando

O Peã sacro, a voar,

Enchem de cânticos o ar...

E vão passando... passando...

Agora, maior tristeza,

Silêncio agora mais fundo;

Dorme, num sono profundo,

Sem sonhos, a natureza.

A flor-da-noite abre o cálix...

E, soltos, os pirilampos

Cobrem a face dos campos,

Enchem o seio dos vales:

Trêfegos e alvoroçados,

Saltam, fantásticos Djins,

De entre as moitas de jasmins,

De entre os rosais perfumados.

Um deles pela janela

Entre no teu aposento,

E pára, plácido e atento,

Vendo-te, pálida e bela.

Chega ao teu cabelo fino,

Mete-se nele: e fulgura,

E arde nessa noite escura,

Como um astro pequenino.

E fica. Os outros lá fora

Deliram. Dormes... Feliz,

Não ouves o que ele diz,

Não ouves como ele chora...

Diz ele: “O poeta encerra

Uma noite, em si, mais triste

Que essa que, quando dormiste,

Velava a face da terra...

Os outros saem do meio

Das moitas cheias de flores:

Mas eu saí de entre as dores

Que ele tem dentro do seio.

Os outros a toda parte

Levam o vivo clarão,

E eu vim do seu coração

Só para ver-te e beijar-te.

Mandou-me sua alma louca,

Que a dor da ausência consome,

Saber se em sonho o seu nome

Brilha agora em tua boca!

Mandou-me ficar suspenso

Sobre o teu peito deserto,

Por contemplar de mais perto

Todo esse deserto imenso!”

Isso diz o pirilampo...

Anda lá fora um rumor

De asas rufladas... A flor

Desperta, desperta o campo...

Todos os outros, prevendo

Que vinha o dia, partiram,

Todos os outros fugiram...

Só ele fica gemendo.

Fica, ansioso e sozinho,

Sobre o teu sono pairando...

E apenas, a luz fechando,

Volve de novo ao seu ninho,

Quando vê, inda não farto

De te ver e de te amar,

Que o sol descerras do olhar,

E o dia nasce em teu quarto...

Edição por Felipe Xavier

Dec 05, 202203:46
Amiga - Florbela Espanca

Amiga - Florbela Espanca

Amiga de Florbela Espanca por Mell

Deixa-me ser a tua amiga, Amor;

A tua amiga só, já que não queres

Que pelo teu amor seja a melhor

A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor

O que me importa a mim?! O que quiseres

É sempre um sonho bom! Seja o que for,

Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...

Como se os dois nascêssemos irmãos,

Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!... Que fantasia louca

Guardar assim, fechados, nestas mãos

Os beijos que sonhei pra minha boca!...

Edição por Felipe Xavier

Nov 28, 202201:16
O NAVIO NEGREIRO - Castro Alves

O NAVIO NEGREIRO - Castro Alves

O NAVIO NEGREIRO de Castro Alves por Mell

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço

Brinca o luar — dourada borboleta;

E as vagas após ele correm... cansam

Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento

Os astros saltam como espumas de ouro...

O mar em troca acende as ardentias,

— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos

Ali se estreitam num abraço insano,

Azuis, dourados, plácidos, sublimes...

Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas

Ao quente arfar das virações marinhas,

Veleiro brigue corre à flor dos mares,

Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes

Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?

Neste saara os corcéis o pó levantam,

Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora

Sentir deste painel a majestade!

Embaixo — o mar em cima — o firmamento...

E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!

Que música suave ao longe soa!

Meu Deus! como é sublime um canto ardente

Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,

Tostados pelo sol dos quatro mundos!

Crianças que a procela acalentara

No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba

Esta selvagem, livre poesia

Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,

E o vento, que nas cordas assobia...

..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?

Por que foges do pávido poeta?

Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira

Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,

Tu que dormes das nuvens entre as gazas,

Sacode as penas, Leviathan do espaço,

Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

Confira a poesia completa em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000068.pdf

Edição por Felipe Xavier

Nov 21, 202209:34
Árvores do Alentejo - Florbela Espanca

Árvores do Alentejo - Florbela Espanca

Árvores do Alentejo de Florbela Espanca por Gus

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!
E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!
Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!
Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!

Edição por Felipe Xavier

Oct 10, 202201:21
Seus Olhos - Gonçalves

Seus Olhos - Gonçalves

Seus Olhos de Gonçalves Dias por Mell

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

De vivo luzir,

Estrelas incertas, que as águas dormentes

Do mar vão ferir;

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Têm meiga expressão,

Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta

De noite cantando, — mais doce que a frauta

Quebrando a solidão.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

De vivo luzir,

São meigos infantes, gentis, engraçados

Brincando a sorrir.

São meigos infantes, brincando, saltando

Em jogo infantil,

Inquietos, travessos; — causando tormento,

Com beijos nos pagam a dor de um momento,

Com modo gentil.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Assim é que são;

Às vezes luzindo, serenos, tranquilos,

Às vezes vulcão!

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,

Tão frouxo brilhar,

Que a mim me parece que o ar lhes falece,

E os olhos tão meigos, que o pranto umedece

Me fazem chorar.

Assim lindo infante, que dorme tranquilo,

Desperta a chorar;

E mudo e sisudo, cismando mil coisas,

Não pensa — a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante,

Às vezes do céu

Cai doce harmonia duma Harpa celeste,

Um vago desejo; e a mente se veste

De pranto co’um véu.

Quer sejam saudades, quer sejam desejos

Da pátria melhor;

Eu amo seus olhos que choram sem causa

Um pranto sem dor.

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,

De vivo fulgor;

Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,

Que falam de amores com tanta poesia.

Com tanto pudor.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

Assim é que são;

Eu amo esses olhos que falam de amores

Com tanta paixão.

Edição por Felipe Xavier

Oct 03, 202202:40
Minha culpa - Florbela Espanca

Minha culpa - Florbela Espanca

Minha Culpa de Florbela Espanca por Mell

Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem

Quem sou?! Um fogo-fátuo, uma miragem...

Sou um reflexo... um canto de paisagem

Ou apenas cenário! Um vaivém...

Como a sorte: hoje aqui, depois além!

Sei lá quem Sou?! Sei lá! Sou a roupagem

Dum doido que partiu numa romagem

E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...

Sou um verme que um dia quis ser astro...

Uma estátua truncada de alabastro...

Uma chaga sangrenta do Senhor...

Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,

Num mundo de vaidades e pecados,

Sou mais um mau, sou mais um pecador...

Edição por Felipe Xavier

Sep 26, 202201:19
A Ondina - Francisca Júlia

A Ondina - Francisca Júlia

A Ondina de Francisca Júlia por Gus

Rente ao mar, que soluça e lambe a praia, a ondina,

Solto, às brisas da noite, o áureo cabelo, nua,

Pela praia passeia. A alvacenta neblina

Tem reflexos de prata à refração da lua.

Uma velha galeta encalhada, a bolina

Rota, pompeia no ar a vela, que flutua.

E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,

Empola-se espumante, à praia vem, recua...

E, surgindo da treva, um monstro negro, fito

O olhar na ondina, avança, embargando-lhe o passo...

Ela tenta fugir, sufoca o choro, o grito...

Mas o mar, que, espreitando-a, as ondas avoluma,

Roja-se aos pés da ondina e esconde-a no regaço,

Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma.

Edição por Felipe Xavier

Sep 12, 202201:24
Midsummer’s night’s dream - Olavo Bilac

Midsummer’s night’s dream - Olavo Bilac

Midsummer’s night’s dream de Olavo Bilac por Gus

Quem o encanto dirá destas noites de estio?

Corre de estrela a estrela um leve calefrio,

Há queixas doces no ar... Eu, recolhido e só,

Ergo o sonho da terra, ergo a fronte do pó,

Para purificar o coração manchado,

Cheio de ódio, de fel, de angústia e de pecado...

Que esquisita saudade! - Uma lembrança estranha

De ter vivido já no alto de uma montanha,

Tão alta, que tocava o céu... Belo país,

Onde, em perpétuo sonho, eu vivia feliz,

Livre da ingratidão, livre da indiferença,

No seio maternal da Ilusão e da Crença!

Que inexorável mão, sem piedade, cativo,

Estrelas, me encerrou no cárcere em que vivo?

Louco, em vão, do profundo horror deste atascal,

Bracejo, e peno em vão, para fugir do mal!

Por que, para uma ignota e longínqua paragem,

Astros, não me levais nessa eterna viagem?

Ah! quem pode saber de que outras vida veio?...

Quantas vezes, fitando a Via-Láctea, creio

Todo o mistério ver aberto ao meu olhar!

Tremo... e cuido sentir dentro de mim pesar

Uma alma alheia, uma alma em minha alma escondida,

O cadáver de alguém de quem carrego a vida...

Edição por Felipe Xavier

Aug 29, 202202:02
Neurastenia - Florbela Espanca

Neurastenia - Florbela Espanca

Neurastenia de Florbela Espanca por Gus

Sinto hoje a alma cheia de tristeza!

Um sino dobra em mim Ave-Marias!

Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,

Faz na vidraça rendas de Veneza...

O vento desgrenhado, chora e reza

Por alma dos que estão nas agonias!

E flocos de neve, aves brancas, frias,

Batem as asas pela Natureza...

Chuva... tenho tristeza! Mas por quê?!

Vento... tenho saudades! Mas de quê?!

Ó neve que destino triste o nosso!

Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!

Gritem ao mundo inteiro esta amargura,

Digam isto que sinto que eu não posso!!...

Edição por Felipe Xavier

Aug 22, 202201:23
Num Meio-Dia de Fim de Primavera - Alberto Caeiro

Num Meio-Dia de Fim de Primavera - Alberto Caeiro

Num meio-dia de fim de primavera de Alberto Caeiro por Gilles

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.


Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas pelas estradas

Que vão em ranchos pela estradas

com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as cousas.

Aponta-me todas as cousas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou —

"Se é que ele as criou, do que duvido" —

"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres."

E depois, cansados de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

e eu levo-o ao colo para casa.


Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

...

Poesia completa em: http://arquivopessoa.net/textos/1487

Edição por Felipe Xavier


Aug 15, 202207:14
Há metafísica bastante em não pensar em nada - Alberto Caeiro

Há metafísica bastante em não pensar em nada - Alberto Caeiro

Há metafísica bastante em não pensar em nada de Alberto Caeiro por Gilles

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?

Sei lá o que penso do mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das cousas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

E não pensar. É correr as cortinas

Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.

A luz do sol não sabe o que faz

E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?

A de serem verdes e copadas e de terem ramos

E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,

A nós, que não sabemos dar por elas.

Mas que melhor metafísica que a delas,

Que é a de não saber para que vivem

Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...

"Sentido íntimo do Universo"...

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

É incrível que se possa pensar em cousas dessas.

É como pensar em razões e fins

Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos

De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,

Não compreende quem fala delas

Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores

E os montes e sol e o luar,

Então acredito nele,

Então acredito nele a toda a hora,

E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores

E os montes e o luar e o sol,

Para que lhe chamo eu Deus?

Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;

Porque, se ele se fez, para eu o ver,

Sol e luar e flores e árvores e montes,

Se ele me aparece como sendo árvores e montes

E luar e sol e flores,

É que ele quer que eu o conheça

Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,

(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).

Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,

Como quem abre os olhos e vê,

E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,

E amo-o sem pensar nele,

E penso-o vendo e ouvindo,

E ando com ele a toda a hora.

Edição por Felipe Xavier

Aug 08, 202204:00
O Tear - Olavo Bilac

O Tear - Olavo Bilac

O Tear de Olavo Bilac por Gilles

A fieira zumbe, o piso estala, chia

O liço, range o estambre na cadeia;

A máquina dos Tempos, dia a dia,

Na música monótona vozeia.

Sem pressa, sem pesar, sem alegria,

Sem alma, o Tecelão, que cabeceia,

Carda, retorce, estira, asseda, fia,

Doba e entrelaça, na infindável teia.

Treva e luz, ódio e amor, beijo e queixume,

Consolação e raiva, gelo e chama

Combinam-se e consomem-se no urdume.

Sem princípio e sem fim, eternamente

Passa e repassa a aborrecida trama

Nas mãos do Tecelão indiferente…

Edição por Felipe Xavier

Aug 02, 202201:21
A duas flores - Castro Alves

A duas flores - Castro Alves

A duas flores de Castro Alves por Gilles

São duas flores unidas,

São duas rosas nascidas

Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,

Da mesma gota de orvalho,

Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas

Das duas asas pequenas

De um passarinho do céu...

Como um casal de rolinhas,

Como a tribo de andorinhas

Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,

Que em parelha descem tantos

Das profundezas do olhar...

Como o suspiro e o desgosto,

Como as covinhas do rosto,

Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera

Numa eterna primavera

Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida

Na rama verde e florida,

Na verde rama do amor!

Edição por Felipe Xavier

Jul 25, 202201:26
Fanatismo - Florbela Espanca

Fanatismo - Florbela Espanca

Fanatismo de Florbela Espanca por Gus

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida

Meus olhos andam cegos de te ver!

Não és sequer a razão do meu viver,

Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...

Passo no mundo, meu Amor, a ler

No misterioso livro do teu ser

A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."

Quando me dizem isto, toda a graça

Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:

"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,

Que tu és como Deus: Princ

Jul 11, 202201:22
Torre de névoa - Florbela Espanca

Torre de névoa - Florbela Espanca

Torre de névoa de Florbela Espanca por Gus

Subi ao alto, à minha Torre esguia,

Feita de fumo, névoas e luar,

E pus-me, comovida, a conversar

Com os poetas mortos, todo o dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria

Dos versos que são meus, do meu sonhar,

E todos os poetas, a chorar,

Responderam-me então: “Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também

Tivemos ilusões, como ninguém,

E tudo nos fugiu, tudo morreu!...”

Calaram-se os poetas, tristemente...

E é desde então que eu choro amargamente

Na minha Torre esguia junto ao Céu!...

Edição por Felipe Xavier

Jul 04, 202201:16
Dentro da noite - Olavo Bilac

Dentro da noite - Olavo Bilac

Dentro da noite de Olavo Bilac por Gus

Ficas a um canto da sala,

Olhas-me e finges que lês...

Ainda uma vez te ouço a fala,

Olho-te ainda uma vez;

Saio... Silêncio por tudo:

Nem uma folha se agita;

E o firmamento, amplo e mudo,

Cheio de estrelas palpita.

E eu vou sozinho, pensando

Em teu amor, a sonhar,

No ouvido e no olhar levando

Tua voz e teu olhar.

Mas não sei que luz me banha

Todo de um vivo clarão;

Não sei que música estranha

Me sobre do coração.

Como que, em cantos suaves,

Pelo caminho que sigo,

Eu levo todas as aves,

Todos os astros comigo.

E é tanta essa luz, é tanta

Essa música sem par,

Que nem sei se é a luz que canta,

Se é o som que vejo brilhar.

Caminho em êxtase, cheio

Da luz de todos os sóis,

Levando dentro do seio

Um ninho de rouxinóis.

E tanto brilho derramo,

E tanta música espalho,

Que acordo os ninhos e inflamo

As gotas frias do orvalho.

E vou sozinho, pensando

Em teu amor, a sonhar,

No ouvido e no olhar levando

Tua voz e teu olhar.

Caminho. A terra deserta

Anima-se. Aqui e ali,

Por toda parte desperta

Um coração que sorri.

Em tudo palpita um beijo,

Longo, ansioso, apaixonado,

E um delirante desejo

De amar e de ser amado.

E tudo, - o céu que se arqueia

Cheio de estrelas, o mar,

Os troncos negros, a areia,

Pergunta, ao ver-me passar:

“O Amor, que a teu lado levas,

A que lugar te conduz,

Que entras coberto de trevas,

E sais coberto de luz?

De onde vens? Que firmamento

Correste durante o dia,

Que voltas lançando ao vento

Esta inaudita harmonia?

Que país de maravilhas,

Que Eldorado singular

Tu visitaste, que brilhas

Mais do que a estrela polar?”

E eu continua a viagem,

Fantasma deslumbrador,

Seguido por tua imagem,

Seguido por teu amor.

Sigo... Dissipo a tristeza

De tudo, por todo o espaço,

E ardo, e canto, e a Natureza

Arde e canta, quando eu passo,

Só porque passo pensando

Em teu amor, a sonhar,

No ouvido e no olhar levando

Tua voz e teu olhar...

Edição por Felipe Xavier

Jun 27, 202203:14
A minha dor - Florbela Espanca

A minha dor - Florbela Espanca

A minha dor de Florbela Espanca por Gus

A minha Dor é um convento ideal

Cheio de claustros, sombras, arcarias,

Aonde a pedra em convulsões sombrias

Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias

Ao gemer, comovidos, o seu mal...

E todos têm sons de funeral

Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha Dor é um convento. Há lírios

Dum roxo macerado de martírios,

Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,

Noites e dias rezo e grito e choro!

E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

Edição por Felipe Xavier

Jun 20, 202201:21
Tortura - Florbela Espanca

Tortura - Florbela Espanca

Tortura de Florbela Espanca por Gus

Tirar dentro do peito a Emoção,

A lúcida Verdade, o Sentimento!

E ser, depois de vir do coração,

Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso de alto pensamento,

E puro como um ritmo de oração!

E ser, depois de vir do coração,

O pó, o nada, o sonho dum momento!...

São assim ocos, rudes, os meus versos:

Rimas perdidas, vendavais dispersos,

Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,

O verso altivo e forte, estranho e duro,

Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

Edição por Felipe Xavier

Jun 13, 202201:14
O cavaleiro pobre - Olavo Bilac

O cavaleiro pobre - Olavo Bilac

O cavaleiro pobre de Olavo Bilac por Gus

Ninguém soube quem era o Cavaleiro Pobre,

Que viveu solitário, e morreu sem falar:

Era simples e sóbrio, era valente e nobre,

E pálido como o luar.

Antes de se entregar às fadigas da guerra,

Dizem que um dia viu qualquer cousa do céu:

E achou tudo vazio... e pareceu-lhe a terra

Um vasto e inútil mausoléu.

Desde então, uma atroz devoradora chama

Calcinou-lhe o desejo, e o reduziu a pó.

E nunca mais o Pobre olhou uma só dama,

Nem uma só! nem uma só!

Conservou, desde então, a viseira abaixada:

E, fiel à Visão, e ao seu amor fiel,

Trazia uma inscrição de três letras, gravada

A fogo e sangue no broquel.

Foi aos prélios da Fé. Na Palestina, quando,

No ardor do seu guerreiro e piedoso mister,

Cada filho da Cruz se batia, invocando

Um nome caro de mulher,

Ela rouco, brandindo o pique no ar, clamava:

“Lumen coeli Regina!” e, ao clamor dessa voz,

Nas hostes dos incréus como uma tromba entrava,

Irresistível e feroz.

Mil vezes sem morrer viu a morte de perto,

E negou-lhe o destino outra vida melhor:

Foi viver no deserto... E era imenso o deserto!

Mas o seu Sonho era maior!

E um dia, a se estorcer, aos saltos, desgrenhado,

Louco, velho, feroz, - naquela solidão

Morreu: - mudo, rilhando os dentes, devorado

Pelo seu próprio coração.

Ida

Para a porta do céu, pálida e bela,

Ida as asas levanta e as nuvens corta.

Correm os anjos: e a criança morta

Foge dos anjos namorados dela.

Longe do amor materno o céu que importa?

O pranto os olhos límpidos lhe estrela...

Sob as rosas de neve da capela,

Ida soluça, vendo abrir-se a porta.

Quem lhe dera outra vez o escuro canto

Da escura terra, onde, a sangrar, sozinho,

Um coração de mão desfaz-se em pranto!

Cerra-se a porta: os anjos todos voam...

Como fica distante aquele ninho,

Que as mães adoram... mas amaldiçoam!

Edição por Felipe Xavier

Jun 06, 202202:49
Lágrimas ocultas - Florbela Espanca

Lágrimas ocultas - Florbela Espanca

Lágrimas ocultas de Florbela Espanca por Gus

Se me ponho a cismar em outras eras

Em que ri e cantei, em que era querida,

Parece-me que foi noutras esferas,

Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,

Que dantes tinha o rir das Primaveras,

Esbate as linhas graves e severas

E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...

Toma a brandura plácida dum lago

O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,

Ninguém as vê brotar dentro da alma!

Ninguém as vê cair dentro de mim!

Edição por Felipe Xavier

May 30, 202201:21
Adamah - Francisca Júlia

Adamah - Francisca Júlia

Adamah de Francisca Júlia por Gus

Homem, sábio produto, epítome fecundo

Do supremo saber, forma recém-nascida,

Pelos mandos do céu, divinos, impelida,

Para povoar a terra e dominar o mundo;

Homem, filho de Deus, imagem foragida,

Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,

Da terrena substância, em que nasceu, oriundo,

Para ser o primeiro a conhecer a vida;

Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada

Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas

De pássaros saudando a primeira alvorada,

Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas

O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada

No primeiro silêncio e nas primeiras trevas...

Edição por Felipe Xavier

May 23, 202201:21
Página Vazia - Euclides da Cunha

Página Vazia - Euclides da Cunha

Página Vazia de Euclides da Cunha por Gilles

Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo, inda na mente,
Muitas cenas do drama comovente
De guerra despiedada e aterradora.

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe ou canto ou ditirambo ardente
Que possa figurar dignamente
Em vosso álbum gentil, minha senhora.

E quando, com fidalga gentileza
Cedestes-me esta página, a nobreza
De nossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde, nesta folha lesse
Perguntaria: "Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes?"


Edição por Felipe Xavier

May 16, 202201:11
Sagres - Olavo Bilac

Sagres - Olavo Bilac

Sagres de Olavo Bilac Por Gus


"Acreditavam os antigos celtas,

do Guadiana espalhados até

a costa, que, no templo circular

do Promontório Sacro, se reuniam

à noite os deuses, em misteriosas

conversas com esse mar cheio

de enganos e tentações."

OL. MARTINS. - Hist. de Portugal.

Em Sagres. Ao tufão, que se desencadeia,

A água negra, em cachões, se precipita, a uivar;

Retorcem-se gemendo os zimbros sobre a areia.

E, impassível, opondo ao mar o vulto enorme,

Sob as trevas do céu, pelas trevas do mar,

Berço de um mundo novo, o promontório dorme.

Só, na trágica noite e no sítio medonho,

Inquieto como o mar sentindo o coração,

Mais largo do que o mar sentindo o próprio sonho,

Só, aferrando os pés sobre um penhasco a pique,

Sorvendo a ventania e espiando a escuridão,

Queda, como um fantasma, o Infante Dom Henrique...

Casto, fugindo o amor, atravessa a existência

Imune de paixões, sem um grito sequer

Na carne adormecida em plena adolescência;

E nunca aproximou da face envelhecida

O nectário da flor, a boca da mulher,

Nada do que perfuma o deserto da vida.

Forte, em Ceuta, ao clamor dos pífanos de guerra,

Entre as mesnadas (quando a matança sem dó

Dizimava a moirama e estremecia a terra),

Viram-no levantar, imortal e brilhante,

Entre os raios do sol, entre as nuvens do pó,

A alma de Portugal no aceiro do montante.

Em Tanger, na jornada atroz do desbarato,

Duro, ensopando os pés em sangue português,

Empedrado na teima e no orgulho insensato,

Calmo, na confusão do horrendo desenlace,

Vira partir o irmão para as prisões de Fez,

Sem um tremor na voz, sem um tremor na face.

É que o Sonho lhe traz dentro de um pensamento

A alma toda cativa. A alma de um sonhador

Guarda em si mesma a terra, o mar, o firmamento,

E, cerrada de todo à inspiração de fora,

Vive como um vulcão, cujo fogo interior

A si mesmo imortal se nutre e se devora.

"Terras da Fantasia! Ilhas Afortunadas,

Virgens, sob a meiguice e a limpidez do céu,

Como ninfas, à flor das águas remansadas!

Pondo o rumo das naus contra a noite horrorosa

Quem sondara esse abismo e rompera esse véu,

Ó sonho de Platão, Atlântida formosa!

Mar tenebroso! aqui recebes, porventura,

A síncope da vida, a agonia da luz?.

Começa o Caos aqui, na orla da praia escura?

E a mortalha do mundo a bruma que te veste?

Mas não! por trás da bruma, erguendo ao sol a Cruz,

Vós sorrides ao sol, Terras Cristãs do Preste!

Promontório Sagrado! Aos teus pés, amoroso,

Chora o monstro... Aos teus pés, todo o grande poder,

Toda a força se esvai do oceano Tenebroso...

Que ansiedade lhe agita os flancos? Que segredo,

Que palavras confia essa boca, a gemer,

Entre beijos de espuma, à algidez do rochedo?

Que montanhas mordeu, no seu furor sagrado?

Que rios, através de selvas e areais,

Vieram nele encontrar um túmulo ignorado?

De onde vem ele? ao sol de que remotas plagas

Borbulhou e dormiu? que cidades reais

Embalou no regaço azul de suas vagas?

Se tudo é morte além, - em que deserto horrendo,

Em que ninho de treva os astros vão dormir?

Em que solidão o sol sepulta-se, morrendo?

Se tudo é morte além, por que, a sofrer sem calma,

Erguendo os braços no ar, havemos de sentir

Estas aspirações, como asas dentro da alma?"

...

Link para todo o poema: https://poesia.fandom.com/pt/wiki/Sagres


Edição por Felipe Xavier



May 09, 202209:55
Tirana - Castro Alves

Tirana - Castro Alves

Tirana de Castro Alves por Mell

"MINHA MARIA é bonita,

Tão bonita assim não há;

O beija-flor quando passa

Julga ver o manacá.

"Minha Maria é morena,

Corno as tardes de verão;

Tem as tranças da palmeira

Quando sopra a viração.

"Companheiros! o meu peito

Era um ninho sem senhor;

Hoje tem um passarinho

P'ra cantar o seu amor.

"Trovadores da floresta!

Não digam a ninguém, não!...

Que Maria é a baunilha

Que me prende o coração.

"Quando eu morrer só me enterrem

Junto às palmeiras do val,

Para eu pensar que é Maria

Que geme no taquaral . . ."

Edição por Felipe Xavier

May 02, 202201:10
Vendaval - Fernando Pessoa

Vendaval - Fernando Pessoa

Vendaval de Fernando Pessoa Declamado por Gus

Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,

Não achas, soprando por tanta solidão,

Deserto, penhasco, coval mais vazio

Que o meu coração!

Indómita praia, que a raiva do oceano

Faz louco lugar, caverna sem fim,

Não são tão deixados do alegre e do humano

Como a alma que há em mim!

Mas dura planície, praia atra em fereza,

Só têm a tristeza que a gente lhes vê;

E nisto que em mim é vácuo e tristeza

É o visto o que vê.

Ah, mágoa de ter consciência da vida!

Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,

Que rasgas os robles – teu pulso divida

Minh'alma do mundo!

Ah, se, como levas as folhas e a areia,

A alma que tenho pudesses levar –

Fosse pr'onde fosse, pra longe da ideia

De eu ter que pensar!

Abismo da noite, da chuva, do vento,

Mar torvo do caos que parece volver –

Porque é que não entras no meu pensamento

Para ele morrer?

Horror de ser sempre com vida a consciência!

Horror de sentir a alma sempre a pensar!

Arranca-me, ó vento; do chão da existência,

De ser um lugar!

E, pela alta noite que fazes mais escura,

Pelo caos furioso que crias no mundo,

Dissolve em areia esta minha amargura,

Meu tédio profundo.

E contra as vidraças dos que há que têm lares,

Telhados daqueles que têm razão,

Atira, já pária desfeito dos ares,

O meu coração!

Meu coração triste, meu coração ermo,

Tornado a substância dispersa e negada

Do vento sem forma, da noite sem termo,

Do abismo e do nada!

Edição por Felipe Xavier

Apr 25, 202202:29
Na margem - Castro Alves

Na margem - Castro Alves

Na margem de Castro Alves por Mell

"VAMOS! VAMOS! Aqui por entre os juncos

Ei-la a canoa em que eu pequena outrora

Voava nas maretas... Quando o vento,

Abrindo o peito à camisinha úmida,

Pela testa enrolava-me os cabelos,

Ela voava qual marreca brava

No dorso crespo da feral enchente!

Voga, minha canoa! Voga ao largo!

Deixa a praia, onde a vaga morde os juncos

Como na mata os caititus bravios...

Filha das ondas! andorinha arisca!

Tu, que outrora levavas minha infância

— Pulando alegre no espumante dorso

Dos cães-marinhos a morder-te a proa, —

Leva-me agora a mocidade triste

Pelos ermos do rio ao longe... ao longe..."

Assim dizia a Escrava...

Iam caindo

Dos dedos do crepúsc'lo os véus de sombra,

Com que a terra se vela como noiva

Para o doce himeneu das noites límpidas ...

Lá no meio do rio, que cintila,

Como o dorso de enorme crocodilo,

Já manso e manso escoa-se a canoa.

Parecia, assim vista ao sol poente,

Esses ninhos, que tombam sobre o rio,

E onde em meio das flores vão chilrando

— Alegres sobre o abismo — os passarinhos!...

Tu — guardas algum segredo?...

Maria, stás a chorar!

Onde vais? Por que assim foges,

Rio abaixo a deslizar?

Pedra — não tens o teu musgo?

Não tens um favônio — flor?

Estrela — não tens um lago?

Mulher — não tens um amor?

Edição por Felipe Xavier

Apr 18, 202202:08
O cego e a guitarra - Fernando Pessoa

O cego e a guitarra - Fernando Pessoa

O cego e a guitarra de Fernando Pessoa por Gus

O ruído vário da rua

Passa alto por mim que sigo.

Vejo: cada coisa é sua

Oiço: cada som é consigo.

Sou como a praia a que invade

Um mar que torna a descer.

Ah, nisto tudo a verdade

É só eu ter que morrer.

Depois de eu cessar, o ruído.

Não, não ajusto nada

Ao meu conceito perdido

Como uma flor na estrada.

Cheguei à janela

Porque ouvi cantar.

É um cego e a guitarra

Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,

São uma coisa só

Que anda pelo mundo

A fazer ter dó.

Eu também sou um cego

Cantando na estrada,

A estrada é maior

E não peço nada.

Edição por Felipe Xavier

Apr 11, 202201:22
Os Versos Que Te Fiz - Florbela Espanca

Os Versos Que Te Fiz - Florbela Espanca

Os Versos Que Te Fiz de Florbela Espanca por Mell

Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que a minha boca tem pra te dizer!

São talhados em mármore de Paros

Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolências de veludos caros,

São como sedas brancas a arder...

Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...

Que a boca da mulher é sempre linda

Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei…

E, nesse beijo, Amor, que eu te não dei

Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Edição por Felipe Xavier

Apr 04, 202201:15
Inania verba - Olavo Bilac

Inania verba - Olavo Bilac

Inania verba de Olavo Bilac por Gus

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,

O que a boca não diz, o que a mão não escreve?

Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,

Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:

A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...

E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,

Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?

Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas

Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?

E as palavras de fé que nunca foram ditas?

E as confissões de amor que morrem na garganta?!

Edição por Felipe Xavier

Mar 28, 202201:36
Em uma tarde de outono - Olavo Bilac

Em uma tarde de outono - Olavo Bilac

Em uma tarde de outono de Olavo Bilac por Mell


Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas

Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.

Outono... Rodopiando, as folhas amarelas

Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...

Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,

Visitaste este mar inabitado e morto,

Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,

Se logo, ao ir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos

A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...

Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!

E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,

E contemplo o lugar por onde te sumiste,

Banhado no clarão nascente do arrebol...

Edição por Felipe Xavier.

Mar 21, 202201:27
Ao Luar - Augusto dos Anjos

Ao Luar - Augusto dos Anjos

Ao Luar de Augusto dos Anjos por Gilles

Quando, à noite, o Infinito se levanta

À luz do luar, pelos caminhos quedos

Minha tátil intensidade é tanta

Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos

E a minha mão, dona, por fim, de quanta

Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,

Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado

Nos paroxismos da hiperestesia,

O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude

E, transmudado em rutilância fria,

Encho o Espaço com a minha plenitude!

Edição por Felipe Xavier.

Mar 14, 202201:27
O Oitavo Pecado - Olavo Bilac

O Oitavo Pecado - Olavo Bilac

O Oitavo Pecado de Olavo Bilac por Gilles

Vivendo para a morte, alegre da tristeza,

Temendo o fogo eterno e a danação sulfúrea,

Gelaste no cilício, em ascética fúria,

A alma ridente, o sangue em esto, a carne acesa.

Foste mártir e herói da própria natureza.

Intacto de ambição, de desejo ou de injúria,

Para ganhar o céu, venceste a ira, a luxúria,

A gula, a inveja, o orgulho, a preguiça e a avareza.

Mas não amaste! E, além do Inferno, um outro existe,

Onde é mais alto o choro e o horror dos renegados:

Ali, penando, tu, que o amor nunca sentiste,

Pagarás sem amor os dias dissipados!

Esqueceste o pecado oitavo: e era o mais triste,

Mortal, entre os mortais, de todos os pecados!

Edição por Felipe Xavier

Mar 07, 202201:30
Natal de Auta de Sousa
Dec 27, 202101:15
A Lagartixa de Álvares de Azevedo
Dec 13, 202101:18
Para quê?! de Florbela Espanca
Dec 06, 202101:12
Não sei quantas almas tenho de Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho de Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho de Fernando Pessoa declamado por Mell

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: “Fui eu?”

Deus sabe, porque o escreveu.

Nov 22, 202101:36
Primavera de Olavo Bilac

Primavera de Olavo Bilac

Primavera de Olavo Bilac declamado por Mell


Ah! quem nos dera que isto, como outrora,

Inda nos comovesse! Ah! quem nos dera

Que inda juntos pudéssemos agora

Ver o desabrochar da primavera!

Saíamos com os pássaros e a aurora.

E, no chão, sobre os troncos cheios de hera,

Sentavas-te sorrindo, de hora em hora:

“Beijemo-nos! amemo-nos! espera!”

E esse corpo de rosa recendia,

E aos meus beijos de fogo palpitava,

Alquebrado de amor e de cansaço...

A alma da terra gorjeava e ria...

Nascia a primavera... E eu te levava,

Primavera de carne, pelo braço!

Nov 15, 202101:18
Velhinha - Florbela Espanca

Velhinha - Florbela Espanca

Velhinha de Florbela Espanca declamado por Mell

Se os que me viram já cheia de graça

Olharem bem de frente para mim,

Talvez, cheios de dor, digam assim:

“Já ela é velha! Como o tempo passa!...”

Não sei rir e cantar por mais que faça!

Ó minhas mãos talhadas em marfim,

Deixem esse fio de oiro que esvoaça!

Deixem correr a vida até o fim!

Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!

Tenho cabelos brancos e sou crente...

Já murmuro orações... falo sozinha...

E o bando cor-de-rosa dos carinhos

Que tu me fazes, olho-os indulgente,

Como se fosse um bando de netinhos...

Nov 08, 202101:23
A Orgia dos duendes - Bernardo Guimarães ESPECIAL HALLOWEEN

A Orgia dos duendes - Bernardo Guimarães ESPECIAL HALLOWEEN

A Orgia dos duendes de Bernardo Guimarães declamado por Mell

Nov 07, 202110:27
A Caçada de Francisca Júlia

A Caçada de Francisca Júlia

A Caçada de Francisca Júlia declamado por Mell

Ao mirante gentil de construção bizarra

Acabou de subir naquele mesmo instante

Em que o seu noivo foi à caça; e, palpitante,

Lá fora cuida ouvir os sons de uma fanfarra.

E, ao mesmo tempo ouvindo o selvagem descante

Que, entre as folhas, sibila a estrídula cigarra,

Ela vai ler a carta onde o seu noivo narra

A dor que há de sofrer quando estiver distante...

E dorme, vendo o sol que, através de uma escassa

Nuvem branca, ilumina as íngremes encostas

Onde aos saltos rabeia a matilha da caça;

E, bem perto, ao rumor de trompas e ladridos,

O seu noivo gentil que, de espingarda às costas,

Lhe oferta uma porção de pássaros feridos...

Oct 28, 202101:26
A um violinista de Olavo Bilac

A um violinista de Olavo Bilac

A um violinista de Olavo Bilac Declamado por Gus

Quando do teu violino, as asas entreabrindo

Mansamente no espaço , iam-se as notas quérulas,

Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo

Os seus cofres de pérolas,

Minhas crenças de amor, esquecidas em calma

No fundo da memória, ouvindo-as recebiam

Novo alento, e outra vez do oceano de minh’alma,

Arquipélago verde, à tona apareciam.

E eu via rutilar o meu amor perdido,

Belo, de nova luz e novo encanto cheio,

E um corpo, que supunha há muito consumido,

Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.

Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista!

E minh’alma revia, alucinada e louca,

Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista,

Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.

Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto,

Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas

De um cemitério, vai achar vivas a um canto

As suas ilusões que acreditava mortas,

E ficava a pensar... como se não partir

Essa fraca madeira ao teu toque violento,

Quando com tanta febre a paixão se estorcia

Dentro do pequenino e frágil instrumento!

Porque, nesse instrumento, unidos num só peito,

Todos os corações da terra palpitavam;

E havia dentro dele, em lágrimas desfeito,

O amor universal de todos os que amavam.

Rio largo de sons, tapetado de flores,

A harmonia do céu jorrava ampla e sonora;

E, boiando e cantando, alegrias e dores

Iam corrente em fora...

A Primavera rindo esfolhava as capelas,

E entornava no chão as ânforas cheirosas:

E a canção acordava as rosas e as estrelas,

E enchia de desejo as estrelas e as rosas.

E a água verde do mar, e a água fresca dos rios,

E as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente,

E a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios,

Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol ardente:

Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava!

O amor, caudal de fogo atropelada e acesa,

Entrava pelo sangue e pela seiva entrava,

E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!

E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio,

O teu pobre violino, o teu amor primeiro:

E inda nas cordas há, como um leve arrepio,

A última vibração do arpejo derradeiro...

Como, ígneas e imortais, num redemoinho insano,

Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis,

Pairam constelações virgens do olhar humano,

Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:

Assim no teu violino, artista! adormecido

À espera do teu arco, em grupos vaporosos,

Dorme, como num céu que não alcança o ouvido,

Um mundo interior de sons misteriosos...

Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento!

Deixem-no ao sol, em glória, em delirante festa!

E ele se embeberá dos perfumes que o vento

Traz dos frescos desvãos do vale e da floresta.

Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos!

As rosas se abrirão em suas cordas rotas!

E ele derramará sobre os verdes caminhos

Da antiga melodia as esquecidas notas!

Hão de as aves cantar, hão de cantar as flores...

Os astros sorrirão de amor na imensa esfera...

E a terra acordará para os novos amores

De nova primavera!

II

Porque, como Terpandro acrescentou à lira,

Para a tornar mais doce, uma corda mais pura,

Que é a corda onde a paixão desprezada suspira,

E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;

Também desse instrumento às quatro cordas de ouro

O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade,

Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o choro

Eterno e a eterna dor da corda da Saudade.

É saudade o que sinto, e me enche de ais a boca,

E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga,

Quando te ouço tocar:

Oct 18, 202106:22
Vaidade de Florbela Espanca

Vaidade de Florbela Espanca

Vaidade de Florbela Espanca declamado por Gus

Sonho que sou a Poetisa eleita,

Aquela que diz tudo e tudo sabe,

Que tem a inspiração pura e perfeita,

Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade

Para encher todo o mundo! E que deleita

Mesmo aqueles que morrem de saudade!

Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...

Aquela de saber vasto e profundo,

Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,

E quando mais no alto ando voando,

Acordo do meu sonho... E não sou nada!...

Oct 11, 202101:12
Presságio de Fernando Pessoa

Presságio de Fernando Pessoa

Presságio de Fernando Pessoa declamado por Gus

O amor, quando se revela,

Não se sabe revelar.

Sabe bem olhar pra ela,

Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente

Não sabe o que há de dizer.

Fala: parece que mente…

Cala: parece esquecer…

Ah, mas se ela adivinhasse,

Se pudesse ouvir o olhar,

E se um olhar lhe bastasse

Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;

Quem quer dizer quanto sente

Fica sem alma nem fala,

Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,

Já não terei que falar-lhe

Porque lhe estou a falar…

Oct 04, 202101:16
Só de Olavo Bilac

Só de Olavo Bilac

Só de Olavo Bilac declamado por Mell

Este, que um deus cruel arremessou à vida,

Marcando-o com o sinal da sua maldição,

Este desabrochou como a erva má, nascida

Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...

Sem constância no amor, dentro do coração

Sente, crespa, crescer a selva retorcida

Dos pensamentos maus, filhos da solidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!

Alma cega, perdida à toa no caminho!

Roto casco de nau, desprezado no mar!

E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;

E, homem, há de morrer como viveu: sozinho!

Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!

Sep 27, 202101:23
O guardador de rebanhos - Fernando pessoa

O guardador de rebanhos - Fernando pessoa

O guardador de rebanhos de Fernando pessoa declamado por Gus

Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar.

Toda a paz da Natureza sem gente

Vem sentar-se a meu lado.

Mas eu fico triste como um pôr de sol

Para a nossa imaginação,

Quando esfria no fundo da planície

E se sente a noite entrada

Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego

Porque é natural e justa

E é o que deve estar na alma

Quando já pensa que existe

E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos

Para além da curva da estrada,

Os meus pensamentos são contentes.

Só tenho pena de saber que eles são contentes,

Porque, se o não soubesse,

Em vez de serem contentes e tristes,

Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva

Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos

Ser poeta não é uma ambição minha

É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes

Por imaginar, ser cordeirinho

(Ou ser o rebanho todo

Para andar espalhado por toda a encosta

A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,

Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz

E corre um silêncio pela erva fora.

Sep 20, 202102:06
Egito de Francisca Júlia

Egito de Francisca Júlia

Egito de Francisca Júlia declamado por Mell

No ar pesado, nenhum rumor, o menor grito;

Nem no chão calvo e seco o mais pequeno adorno;

Um velho ibe somente arranca um raro piorno

Que cresce pelos vãos das lájeas de granito.

A aura branda, que vem do deserto infinito,

Arrepia, ao de leve, a água do Nilo, em torno.

Corre o Nilo, a gemer, sob um calor de forno

Que, em ondas, desce do alto e invade todo o Egito.

Destacando na luz, agora o vulto absorto

De um adelo que passa, em caminho da feira,

Dá mais um tom de mágoa ao vasto quadro morto.

Bate na areia o sol. E, num sonho tranqüilo,

Pompeia, ao largo, a alvura uma barca veleira,

A tremer, a tremer sobre as águas do Nilo.

Sep 16, 202101:34
Amor que morre de Florbela Espanca

Amor que morre de Florbela Espanca

Amor que morre de Florbela Espanca Declamado por Mell

O nosso amor morreu... Quem o diria!

Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta.

Ceguinha de te ver, sem ver a conta

Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...

E outro clarão, ao longe, já desponta!

Um engano que morre... e logo aponta

A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver

São precisos amores, pra morrer

E são precisos sonhos pra partir.

Eu bem sei, meu Amor, que era preciso

Fazer do amor que parte o claro riso

Doutro amor impossível que há de vir!

Sep 06, 202101:15
A Florista de Francisca Júlia

A Florista de Francisca Júlia

A Florista - Francisca Júlia Declamado por Gus

Suspensa ao braço a grávida corbelha,

Segue a passo, tranqüila... O sol faísca...

Os seus carmíneos lábios de mourisca

Se abrem, sorrindo, numa flor vermelha.

Deita à sombra de uma árvore. Uma abelha

Zumbe em torno ao cabaz... Uma ave, arisca,

O pó do chão, pertinho dela, cisca,

Olhando-a, às vezes, trêmula, de esguelha...

Aos ouvidos lhe soa um rumor brando

De folhas... Pouco a pouco, um leve sono

Lhe vai as grandes pálpebras cerrando...

Cai-lhe de um pé o rústico tamanco...

E assim descalça, mostra, em abandono,

O vultinho de um pé macio e branco.

Aug 30, 202101:17
Amor Algébrico - Euclides da Cunha

Amor Algébrico - Euclides da Cunha

Amor Algébrico

de Euclides da Cunha

Acabo de estudar – da ciência fria e vã,

O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,

Acabo de arrancar a fronte minha ardente

Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente

Que este Saara atroz – sem aura, sem manhã,

A Álgebra criou – a mente, a alma mais sã

Nela vacila e cai, sem um sonho virente.

Acabo de estudar e pálido, cansado,

Dumas dez equações os véus hei arrancado,

Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz.

É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso,

Ir dela descansar no seio venturoso

E achar do seu olhar o luminoso X.


Declamado por Gilles

Aug 23, 202101:27
Aniversário de Fernando Pessoa

Aniversário de Fernando Pessoa

Aniversário de Alvaro de Campos - Poema declamado por Mell

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…

A que distância!…

(Nem o acho…)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes…

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas

lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim…

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Aug 16, 202103:03