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Poesia Em Gotas

Poesia Em Gotas

By Marcella ☉☽ @marcellasaraceni_

Marcella Saraceni é poeta, fotógrafa, redatora e entusiasta dos assuntos ligados a sexualidade, política e arte. Nasceu em uma família de pais homossexuais e desde nova percebeu que não cabia nas caixas sociais pré-moldadas.
Para subverter a ordem e aprender a conviver com as perdas em sua vida, escreveu, encontrando na poesia uma fonte de força e coragem para expressar seu sentir.
Na experimentação do corpo e das palavras, segue buscando novos caminhos e relações mais amorosas consigo e com o mundo.
____
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editoraurutau.com/titulo/poesias-famintas
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Cântico Negro - José Régio

Poesia Em GotasApr 11, 2020

00:00
02:26
Quando estou triste - Marcella Saraceni

Quando estou triste - Marcella Saraceni

quando estou triste
ando na rua achando que todos sabem
uma senhora me encarou por mais de dois minutos
e eu tive certeza: ela está vendo minha dor
na farmácia perguntaram se eu não queria levar um lenço umidecido que estava na promoção
assim, do nada

vou caminhando pelas ruas carregando minha tristeza como um cabelo
que está preso, pesando minha cabeça
não o amarro ou faço coques
levo ele do jeito que está quando acordo
e até sou capaz de sorrir
uma, duas, três vezes...
eu não esqueço da alegria
e posso vê-la
está ao alcance dos meus olhos
mas não dos meus pés

se vejo um banco na praça
tenho vontade de sentar e questionar minha vida toda
se me pedem desculpas
respondo: “desculpa eu”
se quase piso no rabo de um gato
sou capaz de chorar
infinitas banalidades me fazem chorar quando estou triste
e para fazer compras no mercado, eu talvez use um óculos escuro
só uso óculos escuro quando estou triste
no sol não. no sol geralmente estou feliz

copacabana. ruas lotadas de gente.
passo chorando entre elas
com um fone de ouvido escutando algo
que não combina em nada com aquele cenário
mas esse movimento todo me interessa
andar chorando entre os pedestres que correm
que não me enxergam
é como um pequeno rio brotando
no chão do asfalto quente
é uma bandeira que diz
(com som de sinere ao fundo)
“eu me permito sentir”

alguém está vindo em minha direção
é um dos rapazes de roupas azuis
do exército da salvação
quase acho que vieram para me salvar
“que pena”
respondo à ele
queria ajudar.
mas hoje não,
hoje estou triste.
Feb 27, 202402:32
Eu durmo comigo - Angélica Freitas

Eu durmo comigo - Angélica Freitas

eu durmo comigo/ de bruços deitada eu durmo comigo/ virada pra direita eu durmo comigo/ eu durmo comigo abraçada comigo/ não há noite tão longa em que não durma comigo/ como um trovador medieval agarrado ao alaúde eu durmo comigo/ eu durmo comigo debaixo da noite estrelada/ eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário/ eu durmo comigo ás vezes de óculos/ e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo/ e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado
Jan 18, 202401:04
Minha cueca caiu do varal no meio da rua - Mila Teixeira

Minha cueca caiu do varal no meio da rua - Mila Teixeira

compro cuecas nas americanas apenas
quando estão na promoção não pago
mais de doze reais por unidade
uso aquelas que parecem shorts qual é o nome
comecei a usar pra que não vissem
minha bunda por baixo das saias e vestidos
aos poucos substituí as calcinhas
tão desconfortáveis
que sempre entram no meio da bunda
as mais baratas então são de poliéster puro
já minhas cuecas são de algodão
macias

lavei as cuecas e ao colocar no varal
acabei deixando uma cair na rua
desci pra buscar vi um senhor estava botando ela
no bolso
ele não entendeu quando pedi de volta e disse que era minha
por estar de bom humor contei:
só uso calcinhas em começos de namoro e olhe lá

ele não me devolveu atravessou a rua balançando minha cueca
agora uso um varal dentro de casa
estou farta de mal-en
Jan 15, 202401:10
Recortes de “Para viver sem medo” - Eduardo Galeano

Recortes de “Para viver sem medo” - Eduardo Galeano

(…) Dizem que o mundo é feito de átomos. Está bem. “O mundo não é feito de átomos, o mundo é feito de histórias”, disse uma amiga. Eu acredito que sim, o mundo deve ser feito de histórias, porque são as histórias que a gente conta e escuta, recria e multiplica. São as histórias que permitem transformar o passado em presente, e também permitem transformar o distante em próximo. O que está distante em algo próximo, possível e visível.
O mundo é isso, revelou: um monte de gente, um mar de foguinhos. Não existem dois fogos iguais. Cada pessoa brilha com luz própria, entre todas as outras. Existem fogos grandes e fogos pequenos, fogos de todas as cores. Existem pessoas de fogo sereno, que nem ficam sabendo do vento, e há pessoas de fogo louco, que enche e arde faíscas. Alguns fogos, fogos bobos, não iluminam nem queimam. Mas outros… outros ardem a vida com tanta vontade, que não pode olhá-los sem pestanejar. Quem se aproxima, se incendeia.

Dec 19, 202301:28
Fera mansa - Marcella Saraceni

Fera mansa - Marcella Saraceni

tinha uma bandeira na entrada da sua rua
ela sinalizava que ali
era um território perigoso

nunca tive medo de encontrar um animal selvagem
do barco afundar
de ser engolida por uma grande onda

saí correndo na noite escura
pulei o muro da sua casa
cheguei no jantar de aniversário do seu avô

fundei um partido
sem líderes
mas com grandes ambições

eu queria ir longe, baby
muito longe
e você queria cuidar da orquídea que crescia

dentro de mim gritava
saia da floresta vamos correr o mundo
e o felino, selvagem, quieto
só me olhava de longe
Dec 11, 202301:04
Estudo da tração na sutileza da diferença - Maria Isabel Iorio

Estudo da tração na sutileza da diferença - Maria Isabel Iorio

1.
uma mulher molhada sobre uma mulher molhada é audível, sólido

2.
uma mulher sobre outra mulher não é preliminar é pré
histórico
3.
uma mulher
para amar uma mulher
é preciso comer com as mãos
4.
uma mulher
para amar uma mulher
é preciso cortar as unhas
5.
colar a trajetória no epicentro:
uma mulher que ama uma mulher aprende a lamber as coisas por den- tro
Dec 07, 202300:45
Ser rebelde - Doris Lessing

Ser rebelde - Doris Lessing

Ser rebelde leva uma vida inteira,
apagando os privilégios da pele,
inscrevendo-se na solidão da discórdia,
deixando para trás os usurpadores...
Não há recompensa para uma rebelde
além de poder regar as flores na hora certa,
sair para alimentar os pássaros numa manhã em que o capital devora,
sorrir com os dentes desgastados diante da desgraça do café da manhã,
ficar sem teto na casa em que ninguém sonha.
As rebeldes sabem do que são feitos os prêmios,
rejeitam as migalhas lançadas pela mão do opressor.
Uma rebelde tem a vida como única recompensa,
porque ninguém se apropria dela,
nela ninguém a usurpa,
porque é o único terreno próprio de cada canto onde dorme.
Sua rebelião sempre consegue encobrir o desânimo do progresso
e se uma rebelde sente alegria na solidão, ela conquistou o mundo.
Dec 07, 202301:12
Aos pés da noite - Marcella Saraceni

Aos pés da noite - Marcella Saraceni

Produção musical, Arranjo e Saxofones: Dudu Rezende

Produção musical e Mixagem: Beno Ibeas

Masterização: Guilherme Lopes ___________________________________

após 30 anos caminhando
ajoelhei aos pés da noite
e disse

cansei

ali entreguei
u m a por u m a
todas as armas
que empunhei
contra mim

de repente meu corpo
era tomado por uma
explosão de energia
que nunca havia experimentado

então não era um movimento
externo
era interno mesmo
pensei

naquele lugar
fiz uma nascente
onde correu rio por dias
e dias
ininterruptamente

a noite observava tudo
olhando sem espanto
como se ja esperasse
minha chegada

como se dissesse
você demorou
o importante é que vim
repetia internamente
tentando manter a faísca acesa

eu não podia esquecer
porque fui até lá
eu precisava sustentar
todo o caos

aos pés da noite
uma montanha se levantava
eram meus pedaços
quando vão acabar?
me perguntava

meu grande desejo
era que aquela explosão
viesse com tudo
que eu fosse vulcão por fora

não aguentava mais erupçar por dentro

eu olhava de frente
pra morte
e dava um beijo nela
terno
mas se despedida

precisava conhecer a vida

já conhecia a morte
de muito perto
já dormi com ela
infinitas vezes

precisava abrir espaço na minha cama
pra ser visitada
pelo sonho
daqueles que você acredita
que podem nascer

enfim depois de semanas
onde só se viu a escuridão
o rio secou
o sol apareceu sem vergonha

nada mais poderia carregar
vergonha

encarei a luz
e não me protegi
deixei meus olhos
arderem
em brasa firme

eu ainda não explodia
mas sentia cada parte de mim
aquecer
borbulhar

havia
vida
ali

e eu sentia que ela era pra mim







e
Nov 06, 202303:31
Aviso da lua que menstrua - Elisa Lucinda

Aviso da lua que menstrua - Elisa Lucinda

Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
Cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
Às vezes parece erva, parece hera
Cuidado com essa gente que gera
Essa gente que se metamorfoseia
Metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
E ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
Mas é outro lugar, aí é que está:
Cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
Que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
Transforma fato em elemento
A tudo refoga, ferve, frita
Ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
É que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
É que tô falando na "vera"
Conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
Delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
Ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
Já se alcança a "cidade secreta"
A atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
Cai na condição de ser displicente
Diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
Que a mulher extrai filosofando
Cozinhando, costurando e você chega com mão no bolso
Julgando a arte do almoço: eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
Tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
Então esquece de morder devagar
Esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
Chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
Vaca é sua mãe. de leite.
Vaca e galinha...
Ora, não ofende. enaltece, elogia:
Comparando rainha com rainha
Óvulo, ovo e leite
Pensando que está agredindo
Que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
Aug 29, 202202:45
Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector

Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?”
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
Mar 24, 202203:37
Costura: poema com “C” - Marcella Saraceni

Costura: poema com “C” - Marcella Saraceni

Chega! Cansei
Cá chegamos
Caramba, como conseguimos?
Cada coisa...
Corações costurados,
Conexões cortadas,
Consciência? Coitada
Ceifada como capim!
Começamos como coelhos
Café cama chamego
Café cama chamego
Café cama chamego
Caminhamos...
Crescemos...
Criamos crianças cachorros calos
Compramos carro casa cobertores
Casamos
Como cúmplices compartilhamos
Canções calor choro cachaça
Cambaleando
Caímos
Como continuar?
Cantando Chico César
Como costumávamos

Nov 07, 202101:44
Matilde Campilho - Fevereiro

Matilde Campilho - Fevereiro

Escute só, isto é muito sério.

Anda, escuta que isso é sério!


O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?


Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem.


O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?


Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.


Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora.


Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de cowboys.


[suspiro]


O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.


De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar.


É… é impossível viver no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta, isso não é impossível, não.


Escuta, isso é sério!


Andamos crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.


Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.

Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!
Oct 08, 202105:44
De cabeça- Ocean Vuong

De cabeça- Ocean Vuong

Você não sabe? O amor de mãe
ignora o amor-próprio
como o fogo ignora
os gritos sonoros
daquilo que queima. Meu filho,
mesmo amanhã
você vai ter o hoje. Você não sabe?
Alguns homens tocam seios
como tocassem
o topo de crânios. Homens
que ultrapassam montanhas
levando seus sonhos, seus mortos
nas costas.
Mas só uma mãe pode andar
com o peso
de um segundo coração que bate.
Garoto tolo.
Talvez você se perca em todo livro
mas jamais vai se esquecer de si
como deus esquece
as próprias mãos.
Quando alguém te perguntar
de onde você é,
responda sempre que o teu nome
virou carne na boca banguela
de uma mulher da guerra.
Que você não nasceu
que você rastejou, de cabeça —
rumo à fome dos cães. Meu filho, responda
que o corpo é uma lâmina que se afia
cortando.
Aug 26, 202101:28
Não há vagas - Ferreira Gullar

Não há vagas - Ferreira Gullar

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Aug 19, 202101:03
Otto Rene Castillo - Intelectuais Apolíticos

Otto Rene Castillo - Intelectuais Apolíticos

Um dia,

os intelectuais
apolíticos
do meu país
serão interrogados
pelo homem
simples
do nosso povo

Serão perguntados
sobre o que fizeram
quando
a pátria se apagava
lentamente,
como uma fogueira frágil,
pequena e só.

Não serão interrogados
sobre os seus trajes,
nem acerca das suas longas
siestas
após o almoço,
tão pouco sobre os seus estéreis
combates com o nada,
nem sobre sua ontológica
maneira
de chegar às moedas.
Ninguém os interrogará
acerca da mitologia grega,
nem sobre o asco
que sentiram de si,
quando alguém, no seu fundo,
dispunha-se a morrer covardemente.
Ninguém lhes perguntará
sobre suas justificações
absurdas,
crescidas à sombra
de uma mentira rotunda.
Nesse dia virão
os homens simples.
Os que nunca couberam
nos livros e versos
dos intelectuais apolíticos,
mas que vinham todos os dias
trazer-lhes o leite e o pão,
os ovos e as tortilhas,
os que costuravam a roupa,
os que manejavam os carros,
cuidavam dos seus cães e jardins,
e para eles trabalhavam,
e perguntarão,
"Que fizestes quando os pobres
sofriam e neles se queimava,
gravemente, a ternura e a vida?"

Intelectuais apolíticos
do meu doce país,
nada podereis responder.

Um abutre de silêncio vos devorará
as entranhas.
Vos roerá a alma
vossa própria miséria.
E calareis,
envergonhados de vós próprios.
Jul 15, 202102:08
Receita para lavar palavra suja - Viviane Mose

Receita para lavar palavra suja - Viviane Mose

Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza. Por exemplo a palavra vida.

Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra, depois enxaguar em água corrente.

São poucas as que resistem a esses cuidados, mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tira sujeira difícil, mas nada.
Toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão.

Agora nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas
soltam um líquido corrosivo, que atende pelo nome de amargura,que é capaz de esvaziar o vigor da língua.

O aconselhado nesse caso é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade. Agora, se o que você quer é somente aliviar as palavras do uso diário, pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.

O perigo neste caso é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
Culpa, por exemplo, a culpa mancha tudo que encontra e deve ser sempre alvejada sozinha.

Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo, já que desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva, pode, o que não é inevitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.

Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.

A sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva,
produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.

Muito importante na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.

Conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos, que passeie
pela expressão dos seus sentidos. À noite, permita que se deite, não a seu lado mas sobre seu corpo.

Enquanto você dorme, a palavra, plantada em sua carne,
prolifera em toda sua possibilidade.

Se puder suportar essa convivência até não mais
perceber a presença dela, então você tem uma palavra limpa.

Uma palavra LIMPA é uma palavra possível.
Jul 13, 202103:11
Canção de agora - Lila Ripoll

Canção de agora - Lila Ripoll

Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

Morreu de tanto morrer
a pena que tanto vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.

Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.
Jul 07, 202100:58
Eu-mulher - Conceição Evaristo

Eu-mulher - Conceição Evaristo

Uma gota de leite

me escorre entre os seios.

Uma mancha de sangue

me enfeita entre as pernas

Meia palavra mordida

me foge da boca.

Vagos desejos insinuam esperanças.

Eu-mulher em rios vermelhos

inauguro a vida.

Em baixa voz

violento os tímpanos do mundo.

Antevejo.

Antecipo.

Antes-vivo

Antes – agora – o que há de vir.

Eu fêmea-matriz.

Eu força-motriz.

Eu-mulher

abrigo da semente

moto-contínuo

do mundo.
Jul 07, 202101:01
Quando o crime vem como a chuva cai - Bertold Brecht

Quando o crime vem como a chuva cai - Bertold Brecht

Como alguém que chega com uma carta importante ao guichê depois das horas regulamentares: o guichê já está fechado.
Como alguém que quer advertir a cidade de um inundação: mas fala uma outra língua. Não o compreendem.
Como um mendigo que pela quinta vez bate a uma porta onde já recebeu esmola quatro vezes: ele tem fome pela quinta vez.
Como alguém cujo sangue lhe corre duma ferida e espera pelo médico: o sangue continua a correr.

Assim vimos nós e relatamos que em nós se cometem crimes.

Quando se relatou pela primeira vez que os nossos amigos era abatidos pouco a pouco, houve um grito de horror. Então foram abatidos cem. Mas quando foram abatidos mil e a matança não tinha fim, espalhou-se o silêncio.

Quando o crime vem como a chuva cai, então já ninguém grita: alto!

Quando os delitos se amontoam, tornam-se invisíveis.
Quando as dores se tornam insuportáveis, já se não ouvem os gritos.
Também os gritos caem como a chuva de Verão.
Jun 03, 202101:40
Aiyra ibi abá - Fábio Brazza / com Mariana Assis

Aiyra ibi abá - Fábio Brazza / com Mariana Assis

Homem branco chegou aqui
E me perguntou:
Quanto custa essa terra
Só falar que eu te dou
Mas eu não entendi
Índio não entende
Minha terra é minha mãe
E a mãe não se vende

Eu agradeço a mensagem cálida, mas cara pálida
Sua proposta não é válida
A vida não é propriedade de quem vence a guerra
A terra não pertence ao ser humano
O ser humano é que pertence a terra
E é ai que você erra, pois não se pode comprar
a clareza da agua a pureza do ar
Não sou dona de nada, nada disso é meu
Tudo isso é um presente que a natureza nos deu

Veja bem esse Rio é sagrado pra nós
Ele que matou a sede dos nossos avós
Ele corre em nós, como o sangue na veia
E é da seiva do solo que sai nossa ceia
Receio, que ainda assim você não entenda
Já que em sua sociedade tudo esta a venda
Mas índio se defende e índio não se rende
Pois a honra para nós não é uma questão de renda

Veja na natureza não há cobiça
A gente tira o que precisa, nada se desperdiça
Dizem que Índio tem preguiça, mas é que não é normal
É o cumulo tamanho acumulo de capital
Esse mundo tá doente, perdido
Se não posso deixar posse
apenas passo a lição do ente querido

Não faz sentido, trabalhar a vida inteira
Por coisas que cedo ou tarde vão parar numa lixeira
Não, eu não entendo a sua maneira de vida
Seu progresso não passa de uma manobra suicida
Meu povo vive em igualdade e liberdade
E você chama a sua sociedade de evoluída?

Ultimamente quando ando pela terra
Escuto o prenúncio de uma guerra
Do homem que mata
Do ferro que berra
Do grito aflito da mata oculto
Pelo ranger da moto serra
Senhor, se for tomar essa terra lhe peco o favor
Que ensine seus filhos a trata-la com amor
Mas se for para manchar
E destruir a terra que eu nasci
Antes de partir, me enterra aqui

Porém saiba que ainda que eu me vá, meu povo viverá
Pois somos um pedaço da alma deste lugar
E quando a última arvore tombar
O homem branco vai perceber
Que dinheiro não se pode comer
Ai você vera; eu e você somos iguais
Temos a mesma alma que as plantas e os animais
Da terra viemos e pra ela iremos voltar
Mas até lá já será tarde demais
Apr 23, 202103:20
Amar - Carlos Drummond de Andrade

Amar - Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão
Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer, amar e malamar
Amar, desamar, amar?

Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso
Sozinho, em rotação universal, senão
Rodar também, e amar?

Amar o que o mar traz à praia
O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha
É sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto

O que é entrega ou adoração expectante
E amar o inóspito, o áspero
Um vaso sem flor, um chão de ferro
E o peito inerte, e a rua vista em sonho
E uma ave de rapina

Este o nosso destino: Amar sem conta
Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas
Doação ilimitada a uma completa ingratidão
E na concha vazia do amor à procura medrosa

Paciente, de mais e mais amor
Amar a nossa falta mesma de amor
E na secura nossa, amar a água implícita
E o beijo tácito, e a sede infinita
Apr 20, 202101:59
Dez chamamentos ao amigo - Hilda Hist

Dez chamamentos ao amigo - Hilda Hist

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Mar 15, 202100:55
Lya Luft

Lya Luft

Se te pareço ausente, não creias:
hora a hora minha dor agarra-se aos teus braços,
hora a hora meu desejo revolve teus escombros,
e escorrem dos meus olhos mais promessas.
Não acredites nesse breve sono;
não dês valor maior ao meu silêncio;
e se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
teus lábios nos meus lábios para ouvir.

Nem acredites se pensas que te falo:
palavras
são meu jeito mais secreto de calar.
Feb 11, 202100:54
Rupi Kaur

Rupi Kaur

meu deus
não espera dentro da igreja
ou na escadaria do templo
meu deus
é o fôlego da refugiada que corre
é a barriga da criança com fome
é o batimento no peito do protesto
meu deus
não descansa entre as páginas
escritas por homens sábios
meu deus
mora entre as coxas suadas
das mulheres vendidas por dinheiro
foi visto pela última vez lavando os pés de um mendigo
meu deus
não é tão distante
quanto eles às vezes dizem
meu deus pulsa dentro da gente infinitamente
Feb 11, 202101:06
Passagem - Marcella Saraceni

Passagem - Marcella Saraceni

tá tudo bem se você achar que agora ainda não é a hora
eu só queria que você lembrasse que as coisas passam
que as horas passam
sejam contadas através do calendário gregoriano
ou pelo tempo que permanecemos nos encarando sem piscar
os dias marés as dores e a graça passam também
as histórias passam as carreatas com políticos falidos passam
a moda a idéia a escada rolante
essa vontade de nos engolirmos
o calor o arrepio esse momento de contemplação de cada marca do rosto
memórias passam certas mágoas rancores e amores passam
esse ímpeto de jogar meu corpo no chão para você não passar
para você se jogar comigo em mim também passa
se você continuar acreditando que o destino tem mãos infinitas
onde se pode jogar tudo nelas
se você não perceber que seguro na extremidade do instante
e estico estico estico de modo que ele dure até você notar
se não sentir que teu corpo grita de alegria quando vê o meu
e tua mente rebelde se afasta com a convicção de que sabe o certo
se nada disso lhe soprar que podemos viver o vento fresco da primavera
sem pensar no calor do verão que nos acorda
abro todas as janelas e portas
te arranco de cada pedaço de mim
libero as estradas do tempo para que você passe
pode ser que eu demore
mas cedo ou tarde
passarei também //// @marcellasaraceni_
Feb 04, 202102:08
Da calma e do silêncio - Conceição Evaristo

Da calma e do silêncio - Conceição Evaristo

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
Dec 29, 202001:05
A terra é nossa - Patativa do Assaré

A terra é nossa - Patativa do Assaré

A terra é um bem comum
Que pertence a cada um.
Com o seu poder além,
Deus fez a grande Natura
Mas não passou escritura
Da terra para ninguém.
Se a terra foi Deus quem fez,
Se é obra da criação,
Deve cada camponês
Ter uma faixa de chão.
Quando um agregado solta
O seu grito de revolta,
Tem razão de reclamar.
Não há maior padecer
Do que um camponês viver
Sem terra pra trabalhar.
O grande latifundiário,
Egoísta e usurário,
Da terra toda se apossa
Causando crises fatais
Porém nas leis naturais
Sabemos que a terra é nossa.
Dec 29, 202001:09
Sem título - Stela do Patrocínio

Sem título - Stela do Patrocínio

eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
eu era ar, espaço vazio, tempo
e gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
eu não tinha formação
não tinha formatura
não tinha onde fazer cabeça
fazer braço, fazer corpo
fazer orelha, fazer nariz
fazer céu da boca, fazer falatório
fazer músculo, fazer dente
eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
fazer cabeça, pensar em alguma coisa
ser útil, inteligente, ser raciocínio
não tinha onde tirar nada disso
eu era espaço vazio puro
Dec 22, 202001:21
E então, o que quereis? - Vladimir Maiakóvski

E então, o que quereis? - Vladimir Maiakóvski

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
Dec 04, 202000:53
Espelho - Marcella Saraceni

Espelho - Marcella Saraceni

O espelho me mostra uma imagem que construo
Dessa carcaça que peguei emprestada
Vou devolver com a etiqueta de frágil rasgada
E cheia de marcas

Não vieram instruções na embalagem
Investigo e uso à vontade
Antes que seja tarde

O que o espelho não mostra
As vezes consigo ver
As vezes não
As vezes veem
As vezes criam
As vezes some

O que o espelho não mostra
Eu sinto
Está aí dentro dessa carcaça
Assim como em qualquer desgraça
E numa garça
Distante
Que faz como tudo o que é real
- Passa
Dec 04, 202001:04
Por que sou levada a escrever? - Glória Anzaldua

Por que sou levada a escrever? - Glória Anzaldua

Gloria Anzaldua em “Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo”

“(...) Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever.”
Sep 30, 202001:52
Nuvens - Wisława Szymborska

Nuvens - Wisława Szymborska

Para descrever as nuvens
muito teria de apressar-me,
pois numa fracção de segundo
deixam de ser estas e começam a ser outras.

É sua propriedade
não se repetir
nas formas, tonalidades, poses e configurações.

Sem o peso de qualquer lembrança,
pairam sem dificuldade sobre os factos.

Mas nem testemunha-los podem,
pois logo se dissipam em todas as direcções.

Comparada com as nuvens,
a vida afigura-se firme,
quase duradoura, eterna.

Perante as nuvens
até uma pedra parece nossa irmã,
na qual se confia,
mas elas, enfim, umas levianas primas afastadas.

As pessoas que existam, caso queiram,
e depois morram uma por uma,
as nuvens não têm nada a ver com
coisas
tão estranhas.

Sobre toda a tua vida
e sobre a minha, ainda não toda,
desfilam com pompa, como desfilavam.

Não têm obrigação de morrer connosco.
Não precisam do nosso olhar para navegar.
Sep 10, 202001:21
Recorte do conto: Para uma avenca partindo - Caio Fernando Abreu

Recorte do conto: Para uma avenca partindo - Caio Fernando Abreu

Eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Pois isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando numa porção de coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis que precisam ser ditas, não faça essa cara de espanto, elas são realmente terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, se você teria, não sei, disponibilidade suficiente para ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouví-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e, se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?
Sep 03, 202001:43
Não te rendas - Mário Benedetti (poema traduzido)

Não te rendas - Mário Benedetti (poema traduzido)

Não te rendas, ainda estás a tempo
de alcançar e começar de novo,
aceitar as tuas sombras
enterrar os teus medos,
largar o lastro,
retomar o voo.
Não te rendas que a vida é isso,
continuar a viagem,
perseguir os teus sonhos,
destravar os tempos,
arrumar os escombros,
e destapar o céu.
Não te rendas, por favor, não cedas,
ainda que o frio queime,
ainda que o medo morda,
ainda que o sol se esconda,
e se cale o vento:
ainda há fogo na tua alma
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque a vida é tua, e teu é também o desejo,
porque o quiseste e eu te amo,
porque existe o vinho e o amor,
porque não existem feridas que o tempo não cure.
Abrir as portas,
tirar os ferrolhos,
abandonar as muralhas que te protegeram,
viver a vida e aceitar o desafio,
recuperar o riso,
ensaiar um canto,
baixar a guarda e estender as mãos,
abrir as asas
e tentar de novo
celebrar a vida e relançar-se no infinito.
Não te rendas, por favor, não cedas:
mesmo que o frio queime,
mesmo que o medo morda,
mesmo que o sol se ponha e se cale o vento,
ainda há fogo na tua alma,
ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque cada dia é um novo início,
porque esta é a hora e o melhor momento.
Porque não estás só, porque eu te amo.
Aug 31, 202001:49
Sem título - Eileen Myles

Sem título - Eileen Myles

Sempre coloco minha buceta no meio das árvores como uma cachoeira como uma porta de entrada para Deus como um bando de pássaros. Sempre coloco a buceta da minha amante na crista de uma onda como uma bandeira que posso jurar minha fidelidade. Este é meu país. Aqui, quando estamos sozinhas, em público. A buceta da minha amante é um distintivo é um cassetete é um capacete é um punhado de flores é uma cachoeira é um rio de sangue é uma bíblia é um furacão é uma vidente. A buceta da minha amante é um grito de guerra é uma reza é almoço é saúde é feliz está na tevê tem senso de humor tem uma carreira tem um copo de café vai para o trabalho medita está sempre só conhece meu rosto conhece minha língua conhece minhas mãos é uma alarmista tem maus modos conhece sua mente. Sempre coloco minha buceta no meio das árvores como uma cachoeira uma peça de joia que uso no meu peito como um distintivo aqui na América para que minha amante & eu possamos estar seguras.
Aug 20, 202001:39
Nós nas bolhas - Carla Diacov

Nós nas bolhas - Carla Diacov



Como um bebê
Eu haveria de passar pelos dias
Sentir cócegas nos ossos
Não enxergar a tradução dos letreiros
Subir as escadas pelos olhos dos outros
Engatinhando para apanhar o frasco de aspirinas
Os ansiolíticos
Vomitar no álbum de lembranças que não são minhas
Esperar que cresçam as unhas nas pontas dos dedos
E arranhar as gengivas
Brincar com as pernas no ar
Dar nós nas bolhas de baba
Morder o dedo do médico
Não enxergar a tradução no que dizem
Vomitar no teu ombro
Me cagar de dez em dez minutos
Chorar só um pouquinho
Engolir moedas
Não enxergar a tradução no que cantam e dançam
Ter os sentimentos cercados de barras
E tomar um bom trago de vodca barata no fim da manhã
Antes da papinha cheia de saliva da mamãe

Como um poeta
Eu haveria de passar pelos dias
Aug 18, 202001:14
A arte de perder - Elizabeth Bishop

A arte de perder - Elizabeth Bishop

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
Aug 12, 202001:20
Eutopia - Marcella Saraceni

Eutopia - Marcella Saraceni

Eu queria, algum dia, habitar o espaço onde minhas memórias estão guardadas
Eu queria entrar nesse lugar onde minhas experiências dançam juntas e pairam no ar
Queria acessar a imensa biblioteca dos livro que li
Olhar a tela onde passa o compilado de tudo que vi
Eu queria enterrar meus pés na mistura dos solos em que já pisei
Mergulhar no oceano das águas que penetrei
E nos olhares em que me afoguei
Eu queria estar no infinito dos abraços que já troquei
E acessar o arquivo da verdade que rasguei
Eu queria tocar o rosto formado por todos que amei
E a poesia criada pelas palavras que vomitei
Eu queria reaprender o tanto que esqueci
Descobrir o aroma dos cheiros que senti
E em uma dimensão sem tempo
renascer no que já vivi
Eu queria encontrar onde todos os caminhos se convergiram
E acordar os sonhos que adormeceram
Estar na papila degustativa das primeiras refeições
E pairar no vento sublime guiado pelas canções
Eu queria navegar
À luz do meio dia
Rumo à cidade vazia
Da Eutopia // Marcella Saraceni @sementeviva
Aug 06, 202002:02
Fagulha- Ana Cristina César

Fagulha- Ana Cristina César

Abri curiosa

o céu.

Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,

coração ante coração,

inteiriça

ou pelo menos mover-me um pouco,

com aquela parcimônia que caracterizava

as agitações me chamando

Eu queria até mesmo

saber ver,

e num movimento redondo

como as ondas

que me circundavam, invisíveis,

abraçar com as retinas

cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria

(só)

perceber o invislumbrável

no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria

apanhar uma braçada

do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria

captar o impercebido

nos momentos mínimos do espaço

nu e cheio

Eu queria

ao menos manter descerradas as cortinas

na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia

que virar pelo avesso

era uma experiência mortal.

Aug 02, 202001:14
Fêmea fênix - Conceição Evaristo

Fêmea fênix - Conceição Evaristo

Navego-me eu–mulher e não temo,
sei da falsa maciez das águas
e quando o receio
me busca, não temo o medo,
sei que posso me deslizar
nas pedras e me sair ilesa,
com o corpo marcado pelo olor
da lama.

Abraso-me eu-mulher e não temo,
sei do inebriante calor da queima
e quando o temor
me visita, não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda,
com o corpo ameigado pelo odor
da chama.

Deserto-me eu-mulher e não temo,
sei do cativante vazio da miragem,
e quando o pavor
em mim aloja, não temo o medo,
sei que posso me fundir ao só,
e em solo ressurgir inteira
com o corpo banhado pelo suor
da faina.

Vivifico-me eu-mulher e teimo,
na vital carícia de meu cio,
na cálida coragem de meu corpo,
no infindo laço da vida,
que jaz em mim
e renasce flor fecunda.
Vivifico-me eu-mulher.
Fêmea. Fênix. Eu fecundo.
Jul 04, 202001:31
O Operário em construção - Vinícius de Moraes

O Operário em construção - Vinícius de Moraes

Poema escrito em 1959 retratando o processo de construção da consciência social do trabalhador.
Jun 16, 202006:52
O que se odeia no Índio - Reynaldo Jardim

O que se odeia no Índio - Reynaldo Jardim

O que se odeia no índio

não é apenas o ocupado espaço.

O que se odeia no índio

é o puro animal que nele habita,

é a sua cor em bronze arquitetada.

A precisão com que a flecha voa

e abate a caça; o gesto largo

com que abraça o rio; o gosto de

afagar as penas e tecer o cocar;

O que se odeia no índio

é o andar sem ruído; a presteza

segura de cada movimento; a eugenia

nítida do corpo erguido

contra a luz do sol.

O que se odeia no índio é o sol.

A árvore se odeia no índio.

O rio se odeia no índio.

O corpo a corpo com a vida

se odeia no índio.

O que se odeia no índio

é a permanência da infância.

E a liberdade aberta

se odeia no índio.

May 25, 202001:29
Elegia número 11 - Mário Quintana

Elegia número 11 - Mário Quintana

Não, não é uma série de pontos de exclamação
- é uma avenida de álamos...
E o que, e para quem, clamariam então?!
Deserta está a cidade.
Todas as avenidas, todas as ruas, todas as estradas, atônitas
se perguntam se vêm ou se vão...
Em nada lhes poderiam servir esses postes de quilometragem:
estão apenas desenhados, como num mapa.
Ah, se houvesse uns passos, ainda que fossem solitários...
Se houvesse alguém andando sozinho... e bastava! São os passos
- são os passos que fazem os caminhos.
Deserta está a cidade.
Se houvesse alguém andando sozinho
- para ele se acenderiam então, como um olhar, todas as cores!
Porque a cidade está cega, também.
O que não é visto por ninguém
não sabe a cor do aspecto que tem.
A cidade está cega e parada a descor de um morto.
Porque tudo aquilo que jamais é visto
- não existe...
Mário Quintana
May 18, 202002:48
O menino que carregava água na peneira - Manoel de Barros

O menino que carregava água na peneira - Manoel de Barros

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e atéinfinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Atéfez uma pedra dar flor!

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho vocêvai ser poeta.
Vocêvai carregar água na peneira a vida toda.
Vocêvai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

May 06, 202002:05
Ode ao instante - Marcella Saraceni / composição musical: Alan Tartari

Ode ao instante - Marcella Saraceni / composição musical: Alan Tartari

Se te olho no fundo da retina
É porque estou aqui
Em alma, corpo, espírito e vontade
Entrego minha presença a tua
Nua, e vazia de expectativas

Não precisas permanecer teu olhar no meu se não sentir
Eu sei que ele as vezes é forte demais
Mas não me peça pra ser menos
Não me diga que poderia ser mais
Não compare nossos corpos
Não saia correndo
Ou morra de medo do agora

Tudo é só esse momento
É leve, profundo e fugaz
Por favor, não pegue no celular - Marcella T Saraceni - @sementeviva
May 03, 202001:36
Se eu fosse eu - Clarice Lispector

Se eu fosse eu - Clarice Lispector

Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor SENTIR.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.

Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro.

"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.

No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teriamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos emfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais
Apr 16, 202002:26
O Poema do Semelhante - Elisa Lucinda

O Poema do Semelhante - Elisa Lucinda


O Deus da parecença
que nos costura em igualdade
que nos papel-carboniza
em sentimento
que nos pluraliza
que nos banaliza
por baixo e por dentro,
foi este Deus que deu
destino aos meus versos,

Foi Ele quem arrancou deles
a roupa de indivíduo
e deu-lhes outra de indivíduo
ainda maior, embora mais justa.

Me assusta e acalma
ser portadora de várias almas
de um só som comum eco
ser reverberante
espelho, semelhante
ser a boca
ser a dona da palavra sem dono
de tanto dono que tem.

Esse Deus sabe que alguém é apenas
o singular da palavra multidão
Eh mundão
todo mundo beija
todo mundo almeja
todo mundo deseja
todo mundo chora
alguns por dentro
alguns por fora
alguém sempre chega
alguém sempre demora.

O Deus que cuida do
não-desperdício dos poetas
deu-me essa festa
de similitude
bateu-me no peito do meu amigo
encostou-me a ele
em atitude de verso beijo e umbigos,
extirpou de mim o exclusivo:
a solidão da bravura
a solidão do medo
a solidão da usura
a solidão da coragem
a solidão da bobagem
a solidão da virtude
a solidão da viagem
a solidão do erro
a solidão do sexo
a solidão do zelo
a solidão do nexo.

O Deus soprador de carmas
deu de eu ser parecida
Aparecida
santa
puta
criança
deu de me fazer
diferente
pra que eu provasse
da alegria
de ser igual a toda gente

Esse Deus deu coletivo
ao meu particular
sem eu nem reclamar
Foi Ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par.

Não fosse a inteligência
da semelhança
seria só o meu amor
seria só a minha dor
bobinha e sem bonança
seria sozinha minha esperança

Apr 14, 202002:29
Madrugada Camponesa - Thiago de Mello

Madrugada Camponesa - Thiago de Mello

Madrugada camponesa
faz escuro ainda no chão
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.
Não vale mais a canção
feita de medo e arremedo
para enganar a solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.
Breve há de ser (sinto no ar)
tempo de trigo maduro.
Vai ser tempo de ceifar.
Já se levantam prodígios,
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão,
um leite novo minando
no meu longe seringal.
Já é quase tempo de amor.
Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana,
minha alma no seu pendão.
Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque amanhã vai chegar.
Apr 12, 202001:21
Cântico Negro - José Régio

Cântico Negro - José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos(...)
E tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Apr 11, 202002:26
Recortes do poema: Canto de companheiro em tempo de cuidados - Thiago de Mello

Recortes do poema: Canto de companheiro em tempo de cuidados - Thiago de Mello

Contigo, companheiro que chegaste,
desconhecido irmão de minha vida,
reparto esta esmeralda que retive
em meu peito no instante fugitivo
mas infinito em que se acaba a infância,
porque a esmeralda não se acaba nunca.

Reparto, companheiro, porque chegas
a este caminho longo e luminoso
mas que também se faz áspero e duro,
onde as nossas origens se abraçaram
dissolvendo-se em paz as diferenças,
engendradas na vida pela força
feroz com que desune o mundo os homens
que feitos foram para cantar juntos
porque só juntos saberão chegar
para a festa de amor que se prepara.
(...)
O tempo é de cuidados, companheiro.
É tempo sobretudo de vigília.
O inimigo está solto e se disfarça,
mas como usa botinas fica fácil
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso
que pisa as forças claras da verdade
e esmaga os verdes que dão vida ao chão.
O tempo é de mentira. Não convém
deixar livre o menino da esmeralda.
Melhor é protegê-lo da violência
que amarra a liberdade em pleno vôo.
A sombra já desceu, e muitas fauces
famintas se escancaram farejando.
Cuidado, companheiro, esconde a rosa,
espanta a mariposa colorida,
é perigosa esta canção de amor.

Cada um no seu lugar, na sua vez,
não descuidar na espreita do inimigo,
que não dorme jamais e é cheio de olhos.
E derramar a luz, no instante certo,
sobre a garra soturna do seu rosto.
É uma espera que dói, mas o que vale
é ter o coração por cidadela,
acender uma tocha em cada metro
de terra conquistado e trabalhar
melhor, para que o chão floresça mais
e o trigo erga bem alto o seu pendão
para a festa de amor, larga e geral,
onde a fome afinal não vai dançar,
porque não comerão somente eleitos,
porque são todos os que comerão.
É por isso que estamos todos juntos:
a nossa força tem o sortilégio
da seiva torrencial da primavera,
e o nosso amor palpita como os ímpetos
das águas amazônicas profundas.

É cantar, companheiro, e repartir
o que é preciso ser do amor geral.
Ninguém será sozinho nunca mais,
nem na solidão, nem no poder.

Sempre contigo irei, e é quando canto
que te defendo, e deito em tua lâmpada
um azeite que dura a treva inteira
nesses tempos de cinza em que a vigília,
espada em flama erguida como a rosa,
só poderá cessar quando outra vez,
envergonhada, regressar a aurora,
que vai lavar de luz o chão amado,
e seremos de novo e simplesmente
meninos repartindo as esmeraldas.


Apr 09, 202003:18