Um Poema Por Dia
By Um Poema Por Dia
Então: “Um Poema por dia” é um projeto do Programa de Educação Tutorial do CEFET-MG e está aí, para nos ajudar a passar de forma mais leve, por esse tempo necessário de reclusão.
De alma livre e coração aberto, esperamos, que vocês desfrutem desse momento de inspiração junto com a gente!
Um Poema Por DiaJul 28, 2020
Emergência
Emergência por Odilon Esteves.
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
Para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
Autor: Mário Quintana.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=SGxpH2xtEUk
Fragmento de Vida e Proezas
Fragmento de Vida e Proezas por Sérgio Gomide
" [...] Lembrei-me de certa manhã, num Pinheiro encontrei um casulo, no instante em que a borboleta dentro dele rompia a casca e se preparava para surgir. Eu esperava, esperava, estava demorando e eu tinha pressa. Então me inclinei sobre ela e comecei a aquecê-lá com o meu hálito, impacientemente eu aquecia e um milagre começou a se desenrolar diante de mim com um ritmo veloz e antinatural, a casca abriu-se completamente e a borboleta surgiu. Jamais esquecerei o meu horror, suas asas ficaram frisadas, não se desdobraram, todo seu corpinho esforçava-se para desenrolá-las, mas não conseguia.
Com o meu hálito, eu também me esforçava para ajudá-la, em vão, ela necessitava de um paciente amadurecimento e desdobramento ao sol, mas agora já era tarde. Meu sopro havia forçado a borboleta a surgir antes da hora, enrugada e temporam. Saiu imatura, moveu-se desesperada e logo depois morreu na palma da minha mão. Acho que esse penugento corpo morto da Borboleta é o maior peso que carrego na consciência. Eu compreendi então em profundidade, é pecado mortal infringir as leis eternas, temos o dever de seguir o ritmo perpétuo com confiança.
Para assimilar calmamente essa reflexão de ano novo empolerei-me em um Rochedo. Aí se eu pudesse, dizia para mim mesmo, neste novo ano ritmar minha vida assim: sem paciência histéricas. Se essa pequena borboleta que eu matei porque tive demasiada pressa para fazer viver, voasse sempre diante de mim mostrando-me o meu caminho e assim uma borboleta que morreu precocemente talvez ajudasse uma irmã, uma borboleta humana a não se apressar e a conseguir desenrolar as asas em ritmo lento [...]"
Autor: Alexis Zorbas
Cântico Negro
Cântico Negro por Odilon Esteves.
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
Autor: José Régio.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=7ZA4mfovFOM
Ismália
Ismália por Alexsandre da Silva Carvalho.
Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu
Viu outra lua no mar
No sonho em que se perdeu
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu
Queria descer ao mar
E num desvario seu
Na torre pôs-se a cantar
Estava perto do céu
Estava longe do mar
E como um anjo pendeu
As asas para voar
Queria a lua do céu
Queria a lua do mar
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma subiu ao céu
Seu corpo desceu ao mar
Autor: Alphonsus de Guimarães.
Elegia
Elegia por Odilon Esteves.
Um dia, amor, tudo o que existe agora,
Tudo o que forma o nosso grande orgulho,
A pureza e o esplendor de nossas almas,
Terá morrido, sem deixar lembrança,
Na velha terra indiferente aos homens.
Nada do que hoje nos parece eterno
Terá ficado do naufrágio imenso.
Esquecidas de nós, as novas almas
Levantarão para as estrelas mudas
O milagre feliz dos novos sonhos,
Sem talvez meditar que a terra outrora
Vira prodígios e deslumbramentos
Semelhantes aos seus, sob um céu puro.
Uma névoa de pó terá coberto
As cidades vaidosas, onde os homens
Hoje, lutando, desvairados, sofrem.
E apenas raros monumentos tristes
Lembrarão, no candor da branca pedra,
A fronte sacratíssima de um sábio,
De um herói, de um guerreiro, de um poeta,
Que a glória cinja com a divina palma.
Novos deuses, em templos majestosos,
Receberão, no plácido silêncio,
O murmúrio das preces comovidas,
O perfumado fumo das oblatas
E o amor das multidões...
Ah! nesse tempo
Eu terei recebido dos destinos
O bem do esquecimento imperturbável...
Deste homem que hoje sou - das minhas crenças,
Dos meus sonhos de amor, dos meus desejos,
Das minhas ambições mais rutilantes -
Nada mais restará, nada, na terra!
Mas, quem sabe? Talvez, um dia, um homem,
Amigo das pesquisas minuciosas,
Visite longamente as bibliotecas,
Onde durmam os livros seculares,
Que as traças lentas vão destruindo a custo.
E esse homem, cheio de um amor antigo,
Curioso do viver das eras mortas,
Talvez encontre, entre outros livros velhos,
Estes versos que escrevo, e em que minha alma
Fala à tua alma em longas confidências.
E então, meu lindo amor, como evadidos
De um sepulcro, nós dois ressurgiremos
Aos olhos caridosos desse amigo,
Vindos das densas sombras do passado.
Talvez...
Seremos belos!
Nossa fronte,
Há de doirá-la a mesma juventude,
Que hoje nos cerca de um clarão sagrado!
Haverá nos teus lábios esse mesmo
Beijo vibrante que me trazes hoje!
E nos olhos terás o mesmo encanto
Que neles me seduz e prende agora!
Sim: no milagre desse instante ardente,
Nessa ressurreição maravilhosa,
Nós brilharemos juntos, aureolados
De um novo amor e de um carinho novo!
E então esse paciente amigo nosso
Volverá para nós, nos dias de hoje,
Toda a sua saudade religiosa,
E invejará, talvez, piedosamente,
Essa breve, ligeira hora de sonho,
Que hoje os destinos deixam que vivamos...
Autor: Múcio Leão.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=IzW8roQ95Gw
Pela Luz dos Olhos Teus
Pela Luz dos Olhos Teus por Paloma Leite.
Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar,
Ai que bom que isso é meu Deus,
Que frio que me dá o encontro desse olhar.
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só pra me provocar,
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar.
Meu amor, juro por Deus,
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar,
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará.
Pela luz dos olhos teus
Eu acho, meu amor, que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.
Autor: Vinicius de Moraes
Para Pintar o Retrato de Um Pássaro
Para Pintar o Retrato de Um Pássaro por Odilon Esteves.
Primeiro pintar uma gaiola
com a porta aberta
pintar depois
algo de lindo
algo de simples
algo de belo
algo de útil
para o pássaro
depois dependurar a tela numa árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
esconder-se atrás da árvore
sem nada dizer
sem se mexer…
Às vezes o pássaro chega logo
mas pode ser também que leve muitos anos
para se decidir
Não perder a esperança
esperar
esperar se preciso durante anos
a pressa ou a lentidão da chegada do pássaro
nada tendo a ver
com o sucesso do quadro
Quando o pássaro chegar
se chegar
guardar o mais profundo silêncio
esperar que o pássaro entre na gaiola
e quando já estiver lá dentro
fechar lentamente a porta com o pincel
depois
apagar uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar numa única pena do pássaro
Fazer depois o desenho da árvore
escolhendo o mais belo galho
para o pássaro
pintar também a folhagem verde e a frescura do vento
a poeira do sol
e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão
e depois esperar que o pássaro queira cantar
Se o pássaro não cantar
mau sinal
sinal de que o quadro é ruim
mas se cantar bom sinal
sinal de que pode assiná-lo
Então você arranca delicadamente
uma das penas do pássaro
e escreve seu nome num canto do quadro.
Autor: Jacques Prévert.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=6OP3j5eVD0o
A Catedral
A Catedral por Alexsandre da silva carvalho.
Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.
E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.
E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.
E o sino geme em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
Autor: Alphonsus de Guimaraens
Das Vantagens de Ser Bobo
Das Vantagens de Ser Bobo por Odilon Esteves.
- O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
- O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."
- Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.
- O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem.
- Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.
- O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.
- O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoiévski.
- Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar-refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era a de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.
- Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
- O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.
- Aviso: não confundir bobos com burros.
- Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a frase célebre: "Até tu, Brutus?"
- Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
- Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.
- Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
- O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.
- Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
- Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.
- Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
- Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
- Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.
- É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.
Autora: Clarice Lispector
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=esx7h5NWfl0
Era noite de lua na minha alma
Era noite de lua na minha alma por Alexsandre da Silva Carvalho.
Era noite de lua na minha alma
quando surgiste pela vez primeira:
em cada estrela, pelo azul em calma,
florescia uma flor em de laranjeira.
A esperança entreabria a verde palma
ante os meus olhos, tépida, fagueira,
como um aroma que inebria e acalma.
Romaria de amor, doce rameira!
E era um jardim de lírios. Suavemente
sorriu-me a tua boca enamorada,
como as flores que são como tu és...
- "Em que pensas?" - dissestes, a voz tremente
- "Senhora, penso que serás fanada como este lírio que te atira aos pés!"
Autor: Alphonsus de Guimaraens
O Homem; As Viagens
O Homem; As Viagens por Odilon Esteves.
O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.
Lua humanizada: tão igual à terra.
O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
Do solar a col-
Onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.
Autor: Carlos Drummond de Andrade
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=mul0js51mWw
Pátria Minha
Pátria Minha por Odilon Esteves.
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.
Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes."
Autor: Vinicius de Moraes.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=bttERoftXxA
O Futuro
O Futuro por Marina Alves.
O futuro? Tem orelhas,
mas é surdo. E é manco.
Se arrasta, sem espanto
mais alheio do que lúcido
com o nosso despreparo.
Se fosse um deus amava o humano mas, como não existe,
o futuro tem de amansar seus ventos, marcando as peles,
as montanhas. Sendo um gênio, não é um exército
de cronogramas, nem de antecipações.
Tem firmeza de flor. E é
invisível, reconhecido
por seus efeitos de brisa,
furacão. Nunca adiado.
Não tem nada a ensinar
no entanto é um mestre
dizem os esgrimistas,
os observadores de saltos,
os gatos também
aprendem certos truques com ele.
E se ama os despreparados
lhe sabem tanto os que fazem
quanto os que esperam.
Os otimistas valem mais
valem quanto?
Cem bifurcações,
sucessivas gerações
de bem aventurados
que topam em pedras,
cicatrizam e correm
bem alimentados
com fome de mais
alimento.
São seus sinais
os imprevistos, os cavalos
os pontos cardeais
os cinco sentidos
e os setes buracos da cabeça.
Autora: Júlia de Carvalho Hansen
Vai Procurar
Vai Procurar por Odilon Esteves.
Vai procurar, no fundo do seu coração
motivos para não ser feliz, que você acha.
Você vai encontrar passados,
pão dormido, roupa velha, mofada,
pedaços de brinquedo,
alegrias de papel,
arrependimentos onipotentes,
desejos frustrados de voltar a vida
que é só pra frente...
Você vai encontrar medos
inventados pelas mães do mundo,
violências de pais,
castigos, promessas, vis encantamentos
e culpas, mais culpas, máximas culpas,
encarregadas de curvar o peito
e afastar você de Deus.
Você vai encontrar uma multidão
de rostos contorcidos de inveja,
um monte de gente falando os caminhos
por onde você deve passar.
Você vai encontrar conselhos, advertências,
ameaças, sutis proteções, elogios,
gratidões, súplicas, presentes:
vozes de todos os donos e todos os escravos.
E no meio de tudo isso, você só não vai encontrar, infelizmente:
VOCÊ.
Autor: Antônio Roberto
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=UxT9G9QRdaM
Cinco meninos, Cinco ratos
Cinco meninos, Cinco ratos por Babi Dias
Às 5 horas da tarde o vento faz o que nunca tinha feito
Deita baixo Alexandre, ele levanta-se, mas de novo é derrubado
E outra vez, e outra vez derrubado
Alexandre tem medo agora e já não se levanta,
Decide deixar que a tempestade passe.
Autor: Gonçalo M Tavares
Expulso Por Bom Motivo
Expulso Por Bom Motivo por Odilon Esteves.
Eu cresci como filho
De gente abastada. Meus pais
Me colocaram um colarinho, e me educaram
No hábito de ser servido
E me ensinaram a dar ordens. Mas quando
Já crescido, olhei em torno de mim
Não me agradaram as pessoas da minha classe e me juntei
À gente pequena.
Assim
Eles criaram um traidor, ensinaram-lhe
Suas artes, e ele
Denuncia-os ao inimigo.
Sim, eu conto seus segredos. Fico
Entre o povo e explico
Como eles trapaceiam, e digo o que virá, pois
Estou instruído em seus planos.
O latim de seus clérigos corruptos
Traduzo palavra por palavra em linguagem comum,
Então
Ele se revela uma farsa. Tomo
A balança da sua justiça e mostro
Os pesos falsos. E os seus informantes relatam
Que me encontro entre os despossuídos, quando
Tramam a revolta.
Eles me advertiram e me tomaram
O que ganhei com meu trabalho. E quando me corrigi
Eles foram me caçar, mas
Em minha casa
Encontraram apenas escritos que expunham
Suas tramas contra o povo. Então
Enviaram uma ordem de prisão
Acusando-me de ter ideias baixas, isto é
As ideias da gente baixa.
Aonde vou sou marcado
Aos olhos dos possuidores.
Mas os despossuídos
Lêem a ordem de prisão
E me oferecem abrigo. Você, dizem
Foi expulso por bom motivo.
Autor: Bertolt Brecht
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=NIzPRP49IeM
Quem se Defende
Quem se Defende por Odilon Esteves.
Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhes tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.
Autor: Bertolt Brecht
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=FwJKbx-7x9U
Iemanjá dos Cinco Nomes
Iemanjá dos Cinco Nomes por Babi Dias.
Ninguém no cais tem um nome só. Todos têm também um apelido ou abreviam o nome, ou o aumentam, ou lhe acrescentam qualquer coisa que recorde uma história, uma luta, um amor.
Iemanjá, que é dona do cais, dos saveiros, da vida deles todos, tem cinco nomes, cinco nomes doces que todo o mudo sabe. Ela se chama Iemanjá, sempre foi chamada assim e esse é seu verdadeiro nome, de dona das águas, de senhora dos oceanos. No entanto os canoeiros amam chamá-la D. Janaína, e os pretos, que são seus filhos mais diletos, que dançam para ela e mais que todos a temem, a chamam de Inaê, com devoção, ou fazem as suas súplicas à Princesa de Aiocá, rainha dessas terras misteriosas que se escondem na linha azul que as separa das outras terras. Porém, as mulheres do cais, que são simples e valentes, Rosa Palmeirão, as mulheres da vida, as mulheres casadas, as moças que esperam noivos, a tratam de D. Maria, que Maria é um nome bonito, é mesmo o mais bonito de todos, o mais venerado, e assim o dão a Iemanjá como um presente, como se lhe levassem uma caixa de sabonetes à sua pedra no Dique. Ela é sereia, é a mãe-d’água, a dona do mar, Iemanjá, D. Janaína, D. Maria, Inaê, Princesa de Aiocá.
Ela domina esses mares, ela adora a lua, que vem ver as noites sem nuvens, ela ama as músicas dos negros. Todo o ano se faz a festa de Iemanjá, no Dique e em Monte Serrat. Então a chamam por todos seus cinco nomes, dão-lhe todos os seus títulos, levam-lhe presentes, cantam para ela.
Autor: Jorge Amado.
Obra: Mar morto
O rei da criação, quem é
O rei da criação, quem é por Odilon Esteves
O joão-de-barro não faz
casa para alugar
o elefante é fortão
mas não faz guerra
o leão não ataca
sem fome
depois o único bicho
inteligente é o homem
Autor: Ulisses Tavares.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=OUw6AagcAGc
Crônica da cidade do Rio de Janeiro
Crônica da cidade do Rio de Janeiro por Babi Dias.
No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo.
Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente:
— Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.
— Não se preocupe — tranquiliza uma vizinha —. Não se preocupe: Ele volta.
A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam deuses africanos. Cristo sozinho não basta.
Autor: Eduardo Galeano
Desabafo
Desabafo por Ludmila Guimarães.
Hoje o carro pode dormir do lado de fora,
minhas lembranças podem dormir do lado de fora,
eu vou dormir como se não tivesse responsabilidades,
que de fato não tenho.
Hoje minhas contas podem atrasar,
minha menstruação pode atrasar,
vou estar ocupada desestressando o céu que anda nervosinho e sem relâmpago.
Hoje pode bater saudade,
bater na cara,
bater na porta.
Hoje eu não me abro para ninguém,
vou fazer segredo para o espelho.
Hoje eu quero respirar poesia,
respingar inocência,
refletir ternura sem assinar um termo de consentimento.
Autora: Samelly Xavier
Café da Manhã
Café da Manhã por Odilon Esteves.
Pôs café na xícara
Pôs leite na xícara com café
Pôs açúcar no café com leite
Com a colherzinha mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
Acendeu um cigarro
Fez círculos com a fumaça
Pôs as cinzas no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs o chapéu na cabeça
Vestiu a capa de chuva porque chovia
E saiu debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus a cabeça entre as mãos
E chorei
Autor: Jacques Prévert.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=d5yQdXoi5Y0
Poesia
Poesia por Odilon Esteves.
"Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
Autor: Carlos Drummond de Andrade
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=N7fDThx-pnU
Grande Sertão Veredas
Grande Sertão Veredas por Ludmila Guimarães.
"...O certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundezas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma..."
Autor: Guimarães Rosa
Por Não Estarem Distraídos
Por Não Estarem Distraídos por Odilon Esteves
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas, as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam mais bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que já eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.
Autor: Clarice Lispector.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=-cNvo25PiTM
Mulher da Vida
Mulher da Vida por Babi Dias
Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.
Autora: Cora Coralina
Ensinamento
Ensinamento por Odilon Esteves.
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
'coitado, até essa hora no serviço pesado'.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
Autora: Adélia Prado.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=u5WwlCpnD8g
Da Felicidade
Da Felicidade por Babi Dias
Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!
Autor: Mário Quintana
A Palavra Mágica
A Palavra Mágica por Odilon Esteves.
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.
Autor: Carlos Drummond de Andrade.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=u6Pv1sD4g_M
Livro do Desassossego, 246
Livro do Desassossego, 246 por Babi Dias.
Considerar todas as coisas que nos sucedem como acidentes ou episódios de um romance a que assistimos não com a atenção senão com a vida. Só com esta atitude poderemos vencer a malícia dos dias e os caprichos dos sucessos.
Autor: Fernando Pessoa.
Interlúdio
Interlúdio por Babi Dias.
As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.
Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.
Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.
Fico ao teu lado.
Autora: Cecília Meireles.
Convite
Convite por Babi Dias.
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?
Autor: José Paulo Paes
Amar
Amar por Odilon Esteves.
Que pode uma criatura senão,
Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer, amar e malamar,
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
Sozinho, em rotação universal, senão
Rodar também, e amar?
Amar o que o mar traz à praia,
O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
É sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
O que é entrega ou adoração expectante,
E amar o inóspito, o áspero,
Um vaso sem flor, um chão de ferro,
E o peito inerte, e a rua vista em sonho,
E uma ave de rapina.
Este o nosso destino: Amor sem conta,
Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
Doação ilimitada a uma completa ingratidão,
E na concha vazia do amor à procura medrosa,
Paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
E na secura nossa, amar a água implícita,
E o beijo tácito, e a sede infinita.
Autor: Carlos Drummond de Andrade.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=N1OtEIYsK30
Levantado do Chão
Levantado do chão por Babi Dias.
E é esse o grande defeito dos destinos,
não fazem nada,
põe-se a espera, a ver,
e nós é que temos que fazer tudo,
por exemplo,
aprender a falar e aprender a calar.
Autor: José Saramago
Quando me Fizeram Deixar o País
Quando me Fizeram Deixar o País por Odilon Esteves.
Lia-se nos jornais do pintor que isto acontecia
porque num poema eu havia zombado
dos soldados da Primeira Guerra.
Realmente, no penúltimo ano da guerra
quando aquele regime, para adiar sua derrota
já enviava os mutilados novamente para o fogo
ao lado dos velhos e meninos de dezassete anos
descrevi em um poema
como um soldado morto era desenterrado e
sob o júbilo de todos os enganadores do povo
sanguessugas e opressores
conduzido de volta ao campo de batalha.
Agora que preparam uma nova “Grande Guerra”
resolvidos a superar inclusive
as barbaridades da última
eles matam ou expulsam
gente como eu
que denuncia
seus golpes.
Autor: Bertolt Brecht
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O medo
O medo por Babi Dias.
Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das Índias.
Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola.
Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro,
grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.
Autor: Eduardo Galeano
Árvore
Árvore por Odilon Esteves.
Um passarinho pediu a meu irmão para ser a sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol, de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus.
Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul.
E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida no tronco das árvores só presta para poesia.
No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara, envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros.
E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradeceu a Deus aquela permanência em árvore porque fez amizade com muitas borboletas.
Autor: Manoel de Barros
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=N-NgJ8X7Wn4
O Rei de Quase Tudo
O Rei de Quase Tudo por Babi Dias.
"Esta narrativa escrita por Eliardo França tem como protagonista um rei. Este quanto mais tinha mais queria. Vivia, por isso, constantemente infeliz e insatisfeito. Na verdade, ele desejava ser o rei de tudo e não de quase tudo. Uma história bem contada sobre o comportamento humano e sua relação com o mundo a sua volta."
Fonte: Global Editora.
Autor: Eliardo França.
Anos Atrás
Anos Atrás por Odilon Esteves.
Anos atrás, quando ao estudar os procedimentos da Bolsa de Trigo de Chicago
Compreendi subitamente como eles administravam o trigo do mundo
E ao mesmo tempo não compreendi e abaixei o livro
Logo percebi: você
Deparou com coisa ruim.
Não havia irritação em mim, e não era a injustiça
Que me apavorava, apenas o pensamento
"Assim como eles fazem não pode ser" me tomou inteiramente.
Essa gente, eu percebi, vive do dano
Que causa aos outros, não do benefício.
Esta é uma situação, percebi, que somente pelo crime
Pode ser mantida, porque é muito ruim para a maioria.
Desse modo toda grande
Proeza da razão, invenção ou descoberta
Levará somente a uma miséria ainda maior.
Coisas assim e semelhantes pensei no momento
Distante de ódio ou lamento, ao abaixar o livro
Com a descrição do Mercado e da Bolsa de Trigo de Chicago.
Muito esforço e muito desassossego
Me esperavam.
Autor: Bertolt Brecht
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=i0F8g5a7Q88
A primeira mulher
A primeira mulher por Babi Dias.
Eu mãe de minhas filhas mãe,
Eu filha da minha mãe filha,
Eu igual a mulher que veio antes de mim e que me segue,
Eu forma, eu forno, eu força da vida,
Galeria de espelho, álbuns de retratos
De quantas mulheres se fazem a minha essência?
Autora: Marina Colasanti.
Esperemos
Esperemos por Odilon Esteves.
Eu ia fazer um poema para você
mas me falaram das crueldades
nas colônias inglesas
e o poema não saiu
ia falar do seu corpo
de suas mãos
amada
quando soube que a polícia espancou um companheiro
e o poema não saiu
ia falar em canções
no belo da natureza
nos jardins
nas flores
quando falaram-me em guerra
e o poema não saiu
perdão amada
por não ter construído o seu poema
amanhã esse poema sairá
esperemos.
Autor: Solano Trindade.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=1O43zs9vUH0.
A Bailarina
A Bailarina por Babi Dias.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.
Não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.
Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.
Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
e não fica tonta bem sai do lugar.
Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.
Autora: Cecília Meireles.
De que Serve a Bondade
De que Serve a Bondade por Babi Dias.
De que serve a bondade
Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
Aqueles para quem foram bondosos?
De que serve a liberdade
Quando os livres têm que viver entre os não-livres?
De que serve a razão
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?
Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;
A faça supérflua!
Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
Por criar uma situação que a todos liberte
E também o amor da liberdade
Faça supérfluo!
Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
Um mau negócio!
Autor: Bertold Brecht.
Poema em Linha Reta
Poema em Linha Reta por Odilon Esteves.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita
Indesculpavelmente sujo
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, absurdo
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante
Que tenho sofrido enxovalhos e calado
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Pra fora da possibilidade do soco
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil
Ó príncipes, meus irmãos
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado
Poderão ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Autor: Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=jz4_W2yfCWg
Levantado do chão
Levantado do chão por Babi Dias.
E é esse o grande defeito dos destinos, não fazem nada, põe se a espera, a ver.
E nós é que temos de fazer tudo, por exemplo, aprender a falar e aprender a calar.
Autor: José Saramago.
O ar e o vento
O ar e o vento por Babi Dias.
Pelos caminhos vou, como o burrinho de São Fernando, um pouquinho a pé e outro pouquinho andando. Às vezes me reconheço nos demais. Me reconheço nos que ficarão, nos amigos abrigos, loucos lindos de justiça e bichos voadores da beleza e demais vadios e mal cuidados que andam por ai e que por ai continuarão, como continuarão as estrelas da noite e as ondas do mar. Então, quando me reconheço neles, eu sou ar aprendendo a saber-me continuado no vento.
Acho que foi Vallejo, Cesar Vallejo, que disse que às vezes o vento muda de ar.
Quando eu já não estiver, o vento estará, continuara estando.
Autor: Eduardo Galeano.
Elogio do Aprendizado
Elogio do Aprendizado por Odilon Esteves.
Aprenda o mais simples!
Para aqueles
Cuja hora chegou
Nunca é tarde demais!
Aprenda o ABC; não basta, mas
Aprenda! Não desanime!
Comece! É preciso saber tudo!
Você tem que assumir o comando!
Aprenda, homem no asilo!
Aprenda, homem na prisão!
Aprenda, mulher na cozinha!
Aprenda, ancião!
Você tem que assumir o comando!
Frequente a escola, você que não tem casa!
Adquira conhecimento, você que sente frio!
Você que tem fome, agarre o livro: é uma arma.
Você tem que assumir o comando.
Não se envergonhe de perguntar, camarada!
Não se deixe convencer
Veja com seus olhos!
O que não sabe por conta própria
Não sabe.
Verifique a conta
É você que vai pagar.
Ponha o dedo sobre cada ítem
Pergunte: O que é isso?
Você tem que assumir o comando.
Autor: Bertolt Brecht.
Assista este poema narrado pelo Odilon Esteves também no Youtube pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=bXNT1TvlTH4
A função da arte
A função da arte por Babi Dias.
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar!
Autor: Eduardo Galeano.
Ao pé de sua criança
Ao pé de sua criança por Babi Dias.
O pé da criança ainda não sabe que é pé,
e quer ser borboleta ou maçã.
Mas depois os vidros e as pedras,
as ruas, as escadas,
e os caminhos de terra dura
vão ensinando ao pé que não pode voar,
que não pode ser fruta redonda num ramo.
Então o pé da criança
foi derrotado, caiu
na batalha,
foi prisioneiro,
condenado a viver num sapato.
Pouco a pouco sem luz
foi conhecendo o mundo à sua maneira,
sem conhecer o outro pé, encerrado,
explorando a vida como um cego.
Autor: Pablo Neruda.
Namorada
Namorada por Babi Dias.
Ela sorria na garupa da bicicleta
O amor se descuida.
Autor: João Carrascoso.